Maurício Andrés Ribeiro
Florência Costa, jornalista
brasileira que viveu muitos anos na Índia e se casou com um indiano escreveu o
livro Os indianos (Editora Contexto, 2012). Em linguagem jornalística
e de fácil comunicação ela informa sobre aspectos contemporâneos da sociedade
indiana. Não se aprofunda em questões filosóficas ou mitológicas, ou na história
e resiliência das castas, mas traz pertinentes informações sobre a atualidade da
questão.
As quatro castas originais se multiplicaram e hoje elas são mais de 3000, com 10000 subcastas.Para os hindus, o sistema
de castas é parte integrante da cosmovisão de reencarnações, carma de vidas
passadas e crenças religiosas. Pela lei do carma, quem errou paga, nesta vida ou
em outras. Milhões de indianos seguem sem maiores questionamentos
tal sistema e se adaptam a ele, casando-se na mesma casta, cumprindo as responsabilidades
de seu grupo de nascimento.
Cada casta tem seu papel
na sociedade cabendo aos indivíduos que nasceram naquele grupo social cumprir
com responsabilidade o seu darma ou missão. O Bhagavad Gita é um dos textos
sagrados hindus mais conhecidos. Nele, o Deus Krishna exorta o guerreiro Arjuna
a cumprir seu dharma, sua missão. “Deve lutar, não importam as consequências.
Krishna proclama, assim, a necessidade de todos seguirem os deveres de sua
casta. Não há salvação individual fora da responsabilidade social.” (Os
indianos, pág. 173)
“Se na morte da pessoa o carma for
predominantemente positivo, acredita-se que ela renascerá em uma condição
melhor, em uma casta superior, por exemplo. Se for negativo, a pessoa será
rebaixada na próxima vida, ou poderá renascer com uma forma de vida inferior,
como um animal.” “A crença tradicional é
a de que os indianos de casta baixa acreditam que pagam nessa vida um “carma
ruim” do passado, e que somente na próxima encarnação poderão nascer em melhor
condição se praticarem boas ações.”
Observa Florência Costa
que “Mesmo sendo uma praga milenar, as castas são um dos assuntos que mais
pegam fogo na Índia do século XXI. A política de ação afirmativa pioneira do
governo indiano (desde 1950), que busca corrigir as injustiças históricas,
alimentou a fogueira das castas. Tudo começou com a promulgação da
Constituição, três anos após a independência: 22,5% das vagas em cargos
públicos e em instituições de ensino foram reservadas aos dalits e à população
indígena.” ( Os indianos, Pág. 41).
Os intocáveis são considerados impuros e essa impureza contamina quem passa pela sua sombra ou os toca. O sistema racionaliza ou justifica a discriminação: o carma de terem nascido dalits seria o produto de atos cometidos em vidas passadas, em outras encarnações.
Os intocáveis são considerados impuros e essa impureza contamina quem passa pela sua sombra ou os toca. O sistema racionaliza ou justifica a discriminação: o carma de terem nascido dalits seria o produto de atos cometidos em vidas passadas, em outras encarnações.
Grandes números de eleitores dalits elegem
representantes políticos para defender seus interesses. Com as políticas
de cotas para excluídos e castas baixas, tem havido movimentação social
intensa, às vezes mal aceita pelas castas mais altas quando um intocável
ascende economicamente. Tem havido uma inversão de antigos privilégios e status
social, quando brâmanes, que teoricamente seriam as castas mais poderosas não
encontram oportunidades de trabalho na Índia e emigram para os EUA, Europa e
outros lugares que valorizam o conhecimento. Com as leis de cotas na Índia, brahmins empobrecidos são levados a emigrar. Brahmins pobres encontram-se no
pior dos mundos, não usufruem das cotas para empregos ou acesso à educação e
universidades e não tem a renda para se manterem. A diáspora é uma saída e
buscam oportunidades no exterior. Em 2015, os Patel do Gujerat, também
supostamente poderosos, fizeram um grande movimento questionando o sistema de
cotas por castas e propondo que o critério de renda seja adotado.
Atualmente há um movimento
de rebaixamento, diz Florência Costa: “Dessa vez, muitos deverão agir de forma
pragmática, ignorando o status social, e deverão identificar-se como
pertencentes às castas mais baixas, pois assim poderão ser beneficiados com as
cotas. O fenômeno do “rebaixamento” do status de castas já existe.
Há um grupo de indianos
que considera as castas como uma maldição, perpetuadora de injustiças e
desigualdades. Vivekananda foi contra o sistema de castas. A escritora
Arundathi Roy, autora de O Deus das pequenas coisas, o considera uma tragédia.
Ambedkar, o dalit que se
tornou um eminente advogado e que redigiu a constituição indiana depois da
independência em 1947, propôs um movimento para conversão ao budismo e para
sair do sistema hindu das castas. “Ambedkar dizia que a intocabilidade nunca
seria abolida enquanto as castas existissem. Ele questionava Gandhi por sua
postura de inclusão dos dalits, que ele chamava de harijans, (filhos de Deus)
numa perspectiva mais cristã do que hindu: “Como se pode acreditar que o senhor
Gandhi é amigo dos intocáveis quando ele deseja manter a casta? Intocabilidade
é apenas uma extensão de castas. Sem abolição das castas não há abolição da
intocabilidade.” (Florência Costa, no livro Os indianos)
Fotos: Ambedkar. Agra,
India.2013.
Ambedkar, o dalit que redigiu a constituição da India, era contra o sistema de castas. |
Florência Costa observa que os dalits migram para as cidades, estão se
fortalecendo economicamente, voltam das cidades bem vestidos, mudam de
profissão, não mais se escondem ou submetem, rompem as amarras do sistema e,
quando são agredidos, buscam que a justiça seja feita.
Na Índia existem cerca de
50 mil guerrilheiros maoístas. “Os maoístas acreditam que a tradição feudal da
Índia, a opressora hierarquia de castas que massacra os que estão na base da
pirâmide e o explosivo problema de distribuição de terras são ingredientes
suficientes para fermentar uma revolução.”
Florência Costa se alinha com a parcela dos
indianos que contesta o sistema e refere-se a elas como uma praga: “a praga das
castas persegue os indianos há milhares de anos e resiste até hoje. A cultura cosmopolita falhou em abolir o casteísmo.”
“Várias
religiões tiveram origem na luta contra o sistema de castas, como o sikhismo, o
budismo, que surgiu criticando a divisão de castas e o sacrifício de animais em
templos como oferendas aos deuses.”(Florência Costa). “Vários movimentos
reformistas dentro do hinduísmo durante a história pregavam a igualdade entre
as pessoas. O movimento bati, por exemplo, na idade média, se rebelou contra as
distinções de casta e descartou rituais bramânicos.” (Pág.21). “A estratégia da
conversão para outras religiões que não têm o sistema de casta foi e continua
sendo usada pelos dalits para tentar fugir da opressão. Muitos migraram para o
cristianismo, para o sikhismo e para o islamismo. (Os indianos, Pág. 38). “Muitas
das supostas castas baixas recontam com orgulho os seus mitos de origem, bem
diferentes da mitologia bramânica.”
Entretanto essas tentativas
de escapar ao sistema de castas levaram a um resultado inverso: a casteização
das demais religiões, como o sikhismo, o islamismo, o cristianismo, ou seja, o
seu contágio pela lógica e pelas práticas de distinção de grupos. Nota Florência
Costa que “apesar da pregação igualitária, o preconceito de castas acabou
migrando para o sikhismo, assim como aconteceu com outras religiões que teoricamente
negam o casteísmo.” (Pág. 74) Do mesmo modo ocorreu com o islamismo “Os
muçulmanos não formam um grupo coeso único. Há vários tipos de divisões. A
primeira delas é a de casta, que migrou para o islamismo, apesar de essa
religião rejeitar oficialmente essas diferenças. Assim, os ashraf (nobres) –
descendentes dos turcos, árabes e persas – olham com desprezo para a maioria
ajlaf, cujos antepassados foram hindus de “casta baixa”. Mais desprezados ainda
são os arzal, correspondentes aos dalits. ” Pág. 78)
Também no cristianismo ele foi incorporado:
“Bamonn, título de nova subcasta dos brâmanes, somente para cristãos. O sucesso
na conversão em Goa foi justamente o de ter permitido aos brâmanes manterem seu
status social. Os católicos brâmanes, segundo os historiadores, mantinham seu
orgulho de casta e o hábito de casarem entre si, nunca se unindo com pessoas de
casta inferior. São cristãos, mas se destacam da maioria hindu de Goa, pois tem
uma identidade brâmane que os diferencia das castas baixas.” (Pág. 81) -
A
intelectualidade de esquerda indiana não se envolveu na postura anticastas por
avaliar que o socialismo as superaria, o que não ocorreu. Com a urbanização da Índia e a sua
industrialização alguns estudiosos esperavam que haveria uma erosão do sistema
e seu enfraquecimento, mas isso de fato não ocorreu. Persiste a sua força mesmo
em áreas urbanas adensadas.
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