sexta-feira, 8 de junho de 2018

Castas e a identidade baseada em critério psicológico


Maurício Andrés Ribeiro
Cada sociedade tem formas de se organizar, criar hierarquias, diferenciar  indivíduos, estratificar camadas sociais. No mundo atual movimentos identitários procuram se firmar baseados em diferentes critérios, tais como diferenças nas aparências (cor da pele, dos cabelos, dos olhos) ou as diferenças de gênero. Há identidades nacionais, o patriotismo e a xenofobia; há identidades de pertencimento a religiões ou igrejas, de filiação ou simpatia com partidos políticos e ideologias, de torcidas por times de futebol etc. Outras características diferenciam indivíduos, tais como os tipos sanguíneos.
As monarquias diferenciam a família real e os nobres de sangue azul dos demais cidadãos e da plebe. Na Grécia antiga havia cidadãos e escravos.  A Índia nunca teve a escravidão, mas tem as castas, adotadas há milênios. 
A casteização é o processo pelo qual elas se formam, como uma forma de estratificação social identitária. Ela foi levada ao extremo da codificação e da formalização na civilização indiana.
Há várias explicações para o surgimento do sistema de castas. Uma delas é que o sistema pode ser  um experimento  biológico e genético realizado pela sociedade indiana, de isolamento reprodutivo ,  com consequências  ecológicas e econômicas.
Além disso a dimensão espiritual está muito presente na Índia. Como lembra meu amigo Sergio Safar “Os hindus são reencarnacionistas. Um aspecto que devemos considerar é que, além de uma experimentação biológica e genética, o sistema de castas experimentava acelerar o desenvolvimento das almas. Estas ao encarnarem escolheriam sem hesitar as castas mais de acordo com seus tipos psicológicos. Ali poderiam realizar e compreender mais facilmente seus desejos até chegarem ao estado de não-desejo. “
O sistema não se baseia nas aparências físicas dos indivíduos ou em suas realidades biológicas.  É baseado na observação psicológica das diferentes aptidões e temperamentos humanos e nas suas vocações para desempenharem certos tipos de funções ou atividades. Uma das explicações para a resiliência do sistema de castas e sua capacidade para perpetuar-se é psicológica.  O sistema é baseado na observação psicológica das  diferentes aptidões e temperamentos humanos e nas suas vocações para desempenharem  certos tipos de funções ou atividades ( originalmente os intelectuais, guerreiros, comerciantes, servos e com o tempo desdobrados em milhares de castas e   de subcastas).  O sistema das castas teria sido criado a partir da observação dos grupos vocacionais. Aquilo que no ocidente se identifica com os temperamentos colérico, sanguíneo, fleumático e melancólico, na Índia se denominam os temperamentos rajásico (mais propenso à ação), sattwico (equilibrado) e tamásico (mais propenso à passividade).

Sri Aurobindo realça esse aspecto psicológico: "A divisão de castas na Índia foi concebida como uma distribuição de tarefas. A casta de um homem dependia de seu dharma, de seus deveres espirituais, morais e práticos, e seu dharma dependia de sua swabhava, seu temperamento e natureza inata." ( in “The Renaissance in India”, pp. 409-410-411)
Originalmente havia quatro grandes castas caracterizadas a partir da especialização em profissões: os brahmins ou intelectuais; os kshastrias, políticos ou militares; os vaishas ou comerciantes; os sudras ou servos.
 As castas se diversificaram ao longo do tempo. Atualmente existem aproximadamente 3.000 castas e podem existir até 10.000 subcastas. À medida que a sociedade se complexifica, criam-se novas especializações e as correspondentes castas dedicadas a desempenhar essas funções.

Para um ocidental e especialmente para um brasileiro acostumado à mestiçagem, ao sincretismo num caldeirão humano, é difícil compreende as castas existentes na Índia, ainda baseadas no isolamento reprodutivo e endogâmicas.
Sobre tais dificuldades comenta o prêmio Nobel de literatura, Rabindranath Tagore:
O que os observadores ocidentais não conseguem discernir é que, em seu sistema de castas, a Índia seriamente aceitou sua responsabilidade de resolver o problema de raças de maneira a evitar toda fricção, e ainda assim oferecendo a cada raça liberdade dentro de suas fronteiras. Admitamos que a Índia não obteve nisso um sucesso absoluto. Mas também deve ser lembrado que o ocidente, situado mais favoravelmente quanto à homogeneidade de raças, nunca deu atenção a esse problema; sempre que confrontado com ele, tentou torná-lo mais fácil, ignorando-o.[2]
Até mesmo para um indiano contemporâneo trata-se de um tema incômodo, desconfortável de ser abordado, complexo e de difícil compreensão e que desperta controvérsias e polêmicas.
Estudar comparativamente as castas indianas e as corporações de ofícios e corporações econômicas, aéem dos movimentos identitários que hoje proliferam no ocidente e no Brasil pode ajudar a jogar luz sobre as questões da estratificação social e sobre as motivações egoísticas ou voltadas para o interesse coletivo e o bem comum. Além disso, ressaltar a importância de, para além das diversidades, revalorizar a unidade humana como espécie.


[1] PRABHU, R.K. & RAO, U.R. (Comp.). The mind of Mahatma Gandhi, p.110.
[2] TAGORE, Rabindranath.  Nationalism, p.70-71.

Nenhum comentário: