sábado, 8 de agosto de 2020

Casteização

Maurício Andrés Ribeiro

Durante o isolamento físico da quarentena assistimos a apresentações artísticas  envolvendo pais e filhos de  duas gerações de músicos de excelência e com alto padrão estético. A infância e a adolescência  num ambiente  musical facilitam  o aprendizado. A cultura familiar doméstica é um ponto de partida  que influencia vocações musicais e coloca os familiares em condições vantajosas em relação a quem não dispõe de tal patrimônio artístico dentro de casa.

Uma cultura familiar facilita a formação em várias outras profissões: linhagens de juristas, militares, políticos, artistas, empresários, jornalistas. O convívio familiar, mais do que a educação formal, proporciona uma cultura que influencia escolhas profissionais e  especializa as pessoas tornando-as  peritas no manejo dos instrumentos de trabalho.

Imaginemos que essas influências culturais aconteçam não apenas entre uma ou duas gerações, mas entre 10, 50 ou cem gerações, a escala de tempo de uma civilização milenar.

Tecendo tapetes - tarefa especializada desempenhada por uma casta funcional. Jaipur
Tingindo saris, especialização de uma casta funcional.
Tingindo saris - tarefa desempenhada por uma casta funcional

Imaginemos que os músicos de uma família passem a se casar com músicos de outra família, também durante dezenas de gerações. Combinando as influências culturais com a genética, refina-se ainda mais essa especialização.  Na raiz da casteização está a combinação de fatores culturais e biológicos por meio do isolamento reprodutivo pelo qual se casam somente pessoas pertencentes a um mesmo subgrupo funcional ou profissional.

A casteização é o processo pelo qual se formam castas numa sociedade, com a especialização funcional numa  atividade ou trabalho e o isolamento reprodutivo.

Anúncio de casamento arranjado nos classificados em jornal indiano. Neste  caso a casta não é barreira, mas prefere-se a casta Iyer.

Tal processo de organização social acontece em várias sociedades em diferentes graus de enraizamento. A Índia foi a sociedade que levou mais longe  e por maior tempo esse processo de casteização, tendo se estruturado originalmente em torno de quatro castas que depois se multiplicaram em milhares de castas e subcastas.

O sistema de castas é controverso e polêmico, acusado  de perpetuar desigualdades e fomentar a violência e a opressão, bem como de dificultar a mobilidade  social. Ao longo da história  vários movimentos procuraram escapar dele. A formação de novas religiões como a dos Sikh, fundada pelo Guru Nanak, teve essa motivação. Ambedkar, que redigiu a constituição indiana, propunha que hindus se tornassem budistas para escapar das castas.  autores que o  definem como uma praga que contamina e contagia outras tradições e se multiplica e viraliza na sociedade. 

Entretanto, o sistema, experimental e pragmático, demonstra enorme resiliência, instalando-se em outras tradições religiosas como a dos muçulmanos e cristãos. Eminentes indianos como Gandhi, Tagore, Sri Aurobindo não condenavam o sistema de castas em si, que consideravam bem concebido, mas propunham que retomasse seu espírito original sem os defeitos e degenerações que o desvirtuaram. Gandhi reconhecia a maneira pela qual cada casta ocupava um nicho econômico no sistema de produção evitando a competição desenfreada e promovendo a cooperação. Numa perspectiva ecológica o sistema de castas indiano facilitou a  adaptação, com cada grupo ocupando um nicho ecológico na exploração dos recursos da natureza. Sri Aurobindo reconhecia sua função prática na organização social ao  se apoiar nos aspectos psicológicos de aptidões e temperamentos humanos e vocações para desempenhar tarefas.

Estudar a  casteização nas sociedades, como ela se origina, como se desenvolve, qual a razão de sua resiliência diante dos ataques que sofre, é um campo fértil para pesquisadores das ciências políticas, sociólogos, etnólogos, antropólogos, psicólogos e das ciências biológicas quanto  a seus componentes ecológicos e genéticos ligados ao isolamento reprodutivo.

Tal estudo poderia lançar luz sobre o futuro do sistema, se ele está fadado a ser abolido e desaparecer à medida que a sociedade humana evoluir ou se seguirá tendo a capacidade de se adaptar às transformações aceleradas do mundo contemporâneo.

 

 

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