segunda-feira, 9 de janeiro de 2023

Abolição de usos da água

Maurício Andrés Ribeiro 

No passado, quando a sociedade aceitava a escravidão, era necessário produzir os instrumentos e  equipamentos para subjugar os escravos: gargalheiras, troncos, chibatas, correntes, algemas, pelourinhos. Cada um desses objetos demandava uma quantidade de água para ser produzido.

No passado, quando se aceitava a tortura, era necessário produzir instrumentos para essa finalidade, como as forquilhas, parafusos, chicotes, garrotes etc e aplicar as práticas  como os afogamentos.  Era necessário usar água para produzir tais instrumentos ou  práticas. Quando a tortura deixou de ser socialmente aceitável,  deixou de ser necessário usar água para essas finalidades. Abolir a tortura e a escravidão aboliu também a demanda por uma parte da água que era então consumida.

Na medida em que as sociedades evoluem, mudam as demandas e as necessidades  de uso da água. Alguns usos são abolidos junto com as práticas que os demandavam, outros caem em desuso.

Ao longo do tempo surgem, por outro lado, novas demandas de uso da água. Atualmente há outras atividades humanas, como as guerras, que demandam grande quantidade de água para  a fabricação de tanques, aviões e navios de guerra, submarinos, armamentos de todo tipo. Enorme quantidade de água é demandada para produzir tais objetos bélicos. Caso as guerras fossem abolidas, deixaria de ser necessário o uso de grandes quantidades de água, que poderiam ser liberadas para outras utilizações ou para a proteção e conservação.

Do mesmo modo, caso se mudassem as dietas alimentares, de hábitos carnivoristas para outros mais vegetarianos, veganos, grandes quantidades de água deixariam de ser necessárias para  irrigação, uso em frigoríficos, matadouros, lavagens de resíduos etc e poderiam ser liberadas para finalidades social e ambientalmente menos impactantes.

O consumismo, o viajismo, o belicismo, o carnivorismo estão presentes na sociedade contemporânea e merecem uma abordagem crítica para que sejam reduzidos ou abolidos, do mesmo modo como no passado a escravidão e a tortura foram questionadas e abolidas depois de lutas e embates.

Hoje a sociedade se encontra diante de situações em que é necessário usar a água de modo responsável, parcimonioso, frugal, austero. É necessário não a desperdiçar em usos que não sejam os socialmente prioritários. Uma sociedade que se dispusesse a rumar para uma melhor qualidade de vida para todos deveria escolher que atividades, bens e serviços deve proporcionar e usar a água prioritariamente para tais finalidades. 
Trata-se de escolhas, definições e diretrizes que as sociedades precisam tomar e que repercutem direta ou indiretamente sobre as demandas por água.

No contexto da mudança do clima e da crise ecológica e hídrica, está na hora de levantar tais questões e colocá-las para a reflexão e o debate social, ético, econômico e político. Uma vez feitas tais escolhas ou definições, os gestores das águas teriam um balizamento mais claro sobre como aplicar a cobrança pelo uso da água, que desincentiva seu desperdício, ou a outorga de direitos de uso, que ajuda a reduzir conflitos, o planejamento de recursos hídricos e os demais instrumentos de que dispõem para bem usar ou proteger o patrimônio hídrico.

 

Um comentário:

Sérgio disse...

Boa reflexão, Maurício