sexta-feira, 6 de janeiro de 2023

UTILITARISMO E HIDROÉTICA

 Maurício Andrés Ribeiro 

Mas pra que
Pra que tanto céu
Pra que tanto mar,
Pra que
De que serve esta onda que quebra
E o vento da tarde
De que serve a tarde
Inútil paisagem

Tom Jobim

 

Na perspectiva utilitarista, a natureza é um objeto para ser usado e consumido, com seus recursos minerais, sua água, os vegetais e animais, atendendo aos desejos, à demanda e à voracidade do ser humano. Na sociedade utilitarista, a água é valorizada por suas possibilidades mercadológicas e para exploração comercial. Cientificidade e tecnicismo predominam. Adota-se uma abordagem pragmática e ela é percebida como um recurso a utilizar, a ser apropriado privadamente e sua utilidade publica fica em segundo plano.

No mundo contemporâneo, prevalece a força das corporações e empresas internacionais e o valor de troca da água se impõe a ferro e fogo sobre o valor simbólico que é caro aos povos indígenas e a populações tradicionais.

A relação com essa coisa – a Terra objeto - é objetiva, sem afeto, pragmática. Nesse tipo de relação, a principal questão deixa de ser a do sentido: o que significa? – para se tornar a da utilidade: para que serve? Que serviços presta? Se é inútil e não serve para nada, não tem valor de uso. Não é funcional, não contribui para o conforto material e portanto não é valorizada.

O utilitarismo subestima o valor dos serviços ambientais prestados gratuitamente pela natureza, tais como a regulação do clima, a produção de água e outros processos fundamentais para sustentar a vida. Manter ecossistemas intocados, espaços protegidos, templos naturais conservados é visto por aqueles com visão utilitarista como uma absurda renúncia ao desenvolvimento econômico e ao usufruto das riquezas naturais, a renúncia do ser humano à felicidade e ao conforto material. Nas artes, a postura utilitarista que coisifica a natureza levou a se associar a beleza à utilidade e a defender que o útil é o belo.

A perspectiva utilitarista e pragmática confronta-se com limites éticos.  O bom nem sempre é o útil, apontou o sábio indiano Sri Aurobindo: “Há somente uma regra segura para o homem ético, alinhar-se ao seu princípio do bem, seu instinto do bem, sua visão do bem, sua intuição do bem, e governar assim sua conduta. Ele pode errar, mas estará no seu caminho, a despeito de todos os tropeços, porque será fiel à lei de sua natureza. A lei da natureza do ser ético é a busca do bem; não pode nunca ser a busca de utilidade.”

Nessa perspectiva crítica se coloca o Movimento Antiutilitarista nas Ciências Sociais – MAUSS que questiona a abordagem de considerar a natureza como objeto a serviço do ser humano. O MAUSS advoga uma relação contemplativa e uma ética do não consumo. 

A crítica ao utilitarismo vem também de uma voz indígena.   Escreve Ailton Krenak[1] que “os povos originários ainda estão presentes neste mundo não porque foram excluídos, mas porque escaparam, é interessante lembrar isso. Em várias regiões do planeta, resistiram com toda força e coragem para não serem completamente engolfados por esse mundo utilitário... Escapar dessa captura, experimentar uma existência que não se rendeu ao sentido utilitário da vida, cria um lugar de silêncio interior. Nas regiões que sofreram uma forte interferência utilitária da vida, essa experiência de silêncio foi prejudicada.” (pg 111) 

Para Ailton Krenak, “A vida é fruição, é uma dança, só que é uma dança cósmica, e a gente quer reduzi-la a uma coreografia ridícula e utilitária. Por que insistimos em transformar a vida em uma coisa útil?” Ele continua :”Nós estamos, em nossa relação com a vida, como um peixinho num imenso oceano, em maravilhosa fruição. Nunca vai ocorrer a um peixinho que o oceano tem que ser útil, o oceano é a vida. Mas nós somos o tempo inteiro cobrados a  fazer coisas úteis.”

A ética utilitária busca o crescimento econômico e o bem estar material; já a ética autóctone defende seus lugares sagrados e apenas secundariamente busca o crescimento econômico. Numa cosmovisão, a água é um recurso econômico; noutra, ela é um patrimônio ecológico e espiritual.

O grande desafio para implementar uma política de águas é ético e espiritual: transformar uma relação agressiva e utilitarista em uma postura amigável, de cuidado e de reverência para com ela.  Nesse contexto, cabe desaprender conceitos e visões de mundo, descondicionar a consciência de seu viés utilitarista e fortalecer o valor da  proteção e da frugalidade.  A demanda por água, se descontrolada e desregulada, se não balizada por limites técnicos e éticos, pode levar a sua exaustão e fazer com que desapareça e se torne escassa, prejudicando a vida e a qualidade de vida. A postura utilitarista enxerga a água como um recurso, sem questionar o uso que  é feito dela.
 

A legislação brasileira é diferente de outras legislações, como a europeia, por exemplo, que enfatiza a importância ecológica da água como um patrimônio a ser protegido. O viés utilitarista da lei brasileira precisa ser contrabalançado com uma valorização da água por seu valor ecológico.



[1] Krenak,Ailton Avida não é útil  Companhia das Letras, São Paulo, 2022. Pgs 108 e 111.

 

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