Ela tem grande méritos. Adotou o
espírito da democracia participativa. Deu voz e poder de decisão a
representantes de usuários, governos, organizações civis de recursos hídricos
e comunidades. Definiu um sistema de gerenciamento de recursos hídricos do
qual participam conselhos de recursos hídricos, comitês de bacia e as
agências, que são os motores executivos para impulsionar o sistema. |
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Nessas décadas de vigência da lei houve
avanços na gestão das águas no Brasil. Muitos conflitos foram evitados, muito
conhecimento foi produzido, multiplicaram-se as pessoas capacitadas para
gerenciar os recursos hídricos. Implantaram-se conselhos e comitês; criaram-se
órgãos gestores e agências reguladoras; aplicaram-se instrumentos de gestão;
tornou-se prioritária a busca por segurança hídrica.
Entretanto a lei tem algumas limitações.
Historicamente,
desde o Código de Águas de 1934, o tema era da alçada do setor elétrico, devido
à importância da hidroeletricidade na matriz energética brasileira. A lei brasileira foi concebida num momento em que o usuário dominante era
o setor elétrico. Na
origem conceitual e no DNA da lei 9.433 há
forte influência do setor elétrico. Um Departamento Nacional de Águas e Energia
Elétrica – DNAEE era responsável por cuidar do tema. A lei traz naturalmente a influência do pensamento e das práticas desse
usuário,
a geração de hidroeletricidade. Para esse uso o grande segmento de interesse
é o curso médio dos rios onde há volume e quedas com potencial para gerar
energia. Os cursos superiores e as nascentes em geral têm pouca água e as zonas
costeiras e
estuarinas tampouco são priorizadas, pois nelas há poucas diferenças de
altitudes para gerar energia. As subterrâneas não são aproveitáveis para gerar energia e foram colocadas
sob o domínio dos estados. A questão da
qualidade é secundária para a geração de energia. Assim, a lei privilegiou aspectos
ligados às águas utilizáveis na geração de energia.
No Brasil, a Lei nº 9.433 explicita duas vezes
que a água é um recurso natural limitado, dotado de valor
econômico, mas não explicita em nenhum momento
que ela tenha valor ecológico. Aqui há um contraste com a
legislação europeia. Aprovadas em anos próximos,
as leis no Brasil e na Europa são bastantes diferentes em suas concepções. Aprovada em 1997, a lei enfatizava o valor econômico da agua e seus aspectos
utilitários como recursos hídricos.
Na Europa, a diretiva quadro das águas foi aprovada
no ano 2000 e enfatizava a meta de alcançar o bom estado ecológico das aguas e
a sua importância como
patrimônio a ser protegido.
A lei menciona 174 vezes a palavra
recurso. Entretanto a legislação brasileira em nenhum dispositivo define o que são
os recursos hídricos.
Todo recurso hídrico é agua, mas nem toda água é recurso hídrico. Por
isso, a lei 9.433 pode ser chamada de lei de recursos hídricos, mas não de lei
das águas. Ela a
concebeu como um recurso a ser utilizado e não como patrimônio de valor ecológico a ser, também, cuidado e
protegido. A lei não menciona uma única vez a
palavra patrimônio, uma riqueza a ser cuidada e
preservada.
Recursos hídricos se referem basicamente àquela
porção das aguas aproveitável como
insumo para a economia: as águas doces superficiais e subterrâneas. Não são
consideradas como recursos hídricos as águas dentro dos seres vivos (biosfera),
nas nuvens (atmosfera) no interior quente da terra (pirosfera) no espaço
sideral (cosmosfera). Todos os recursos hídricos são água, mas nem toda água é
um recurso hídrico.
Assim, a lei brasileira pode ser caracterizada como uma lei da política
nacional de recursos hídricos, mas não como uma lei das águas. Para tornar-se efetivamente uma
lei das águas, sua concepção precisaria ser ampliada para abranger as demais
formas de presença da água nos oceanos e mares, nas nuvens, nos corpos vivos
etc.
A visão utilitarista que está na sua
origem ou DNA tem repercussões em toda a política e na gestão que se faz baseada no texto legal. Quando se deseja proteger um curso d’água como
patrimônio é necessário recorrer a outras legislações, tais como os planos
diretores, na lei urbanística, e o
tombamento, na legislação relativa ao patrimônio cultural. Caso venha a se ecologizar a legislação brasileira
de recursos hídricos, alterar o seu DNA e sua concepção ela poderá, à maneira da diretiva quadro das águas
europeia, valorizar seus aspectos ecológicos e de proteção do patrimônio.
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