sexta-feira, 27 de janeiro de 2023

COMENTÁRIOS SOBRE A LEI BRASILEIRA DE RECURSOS HÍDRICOS

 Maurício Andrés Ribeiro

 A lei brasileira de recursos hídricos,  n.9.433 de 8 de janeiro de 1997, completou 25 anos em 2022.

Ela tem grande méritos. Adotou o espírito da democracia participativa. Deu voz e poder de decisão a representantes de usuários, governos, organizações civis de recursos hídricos e comunidades. Definiu um sistema de gerenciamento de recursos hídricos do qual participam conselhos de recursos hídricos,  comitês de bacia  e as agências, que são os motores executivos para impulsionar o sistema.

 

Ela dispôs que os planos de recursos hídricos devem identificar potenciais conflitos pelo uso. Conferiu ao sistema de gerenciamento de recursos hídricos a missão de arbitrar administrativamente tais conflitos: em primeira instância, isso cabe aos comitês de bacia e em última instância ao Conselho Nacional de Recursos hídricos - CNRH.

Nessas décadas de vigência da lei houve avanços na gestão das águas no Brasil. Muitos conflitos foram evitados, muito conhecimento foi produzido, multiplicaram-se as pessoas capacitadas para gerenciar os recursos hídricos. Implantaram-se conselhos e comitês; criaram-se órgãos gestores e agências reguladoras; aplicaram-se instrumentos de gestão; tornou-se prioritária a busca por segurança hídrica.

Entretanto a lei tem  algumas limitações.

Historicamente, desde o Código de Águas de 1934, o tema era da alçada do setor elétrico, devido à importância da hidroeletricidade na matriz energética brasileira. A lei brasileira foi concebida num momento em que o usuário dominante era o setor elétrico. Na origem conceitual e no DNA da lei  9.433 há forte influência do setor elétrico. Um Departamento Nacional de Águas e Energia Elétrica – DNAEE era responsável por cuidar do tema. A lei traz naturalmente a influência do pensamento e das práticas desse usuário, a geração de hidroeletricidade. Para esse uso o grande segmento de interesse é o curso médio dos rios onde há volume e quedas com potencial para gerar energia. Os cursos superiores e as nascentes em geral têm pouca água e as zonas costeiras e estuarinas tampouco são priorizadas, pois nelas há poucas diferenças de altitudes para  gerar energia. As subterrâneas não são aproveitáveis para gerar energia e foram colocadas sob o domínio dos estados. A questão da qualidade é secundária para a geração de energia. Assim, a lei privilegiou aspectos ligados às águas utilizáveis na geração de energia.

No Brasil, a Lei nº 9.433 explicita duas vezes que a água é um recurso natural limitado, dotado de valor econômico, mas não explicita em nenhum momento que ela tenha valor ecológico. Aqui há um contraste com a legislação europeia. Aprovadas em anos próximos, as leis  no Brasil e na Europa  são bastantes diferentes em suas concepções. Aprovada em 1997, a lei enfatizava  o valor econômico da agua e seus aspectos utilitários como recursos hídricos.

Na Europa, a diretiva quadro das águas foi aprovada no ano 2000 e enfatizava a meta de alcançar o bom estado ecológico das aguas e a sua importância como patrimônio a ser protegido.

 
A lei brasileira tinha um viés utilitarista, considerava a agua como um objeto, um insumo da produção econômica, um recurso hídrico ao qual se podia recorrer para atender a necessidades essenciais ou a demandas supérfluas da sociedade. As outorgas ou autorizações para uso das águas visavam repartir esse recurso, crescentemente disputado para a produção agrícola, o abastecimento humano, a geração de energia, o transporte hidroviário, a indústria etc.

A lei menciona 174 vezes a palavra recurso. Entretanto a legislação brasileira em nenhum dispositivo define o que são os recursos hídricos.  Todo recurso hídrico é agua, mas nem toda água é recurso hídrico. Por isso, a lei 9.433 pode ser chamada de lei de recursos hídricos, mas não de lei das águas. Ela a concebeu como um recurso a ser utilizado e não como patrimônio de valor ecológico a ser, também, cuidado e protegido. A lei não menciona uma única vez a palavra patrimônio, uma riqueza a ser cuidada e preservada.

Recursos hídricos se referem basicamente àquela porção das  aguas aproveitável como insumo para a economia: as águas doces superficiais e subterrâneas. Não são consideradas como recursos hídricos as águas dentro dos seres vivos (biosfera), nas nuvens (atmosfera) no interior quente da terra (pirosfera) no espaço sideral (cosmosfera). Todos os recursos hídricos são água, mas nem toda água é um recurso hídrico.

Assim, a lei brasileira  pode ser caracterizada como uma lei da política nacional de recursos hídricos, mas não como uma lei  das águas. Para tornar-se efetivamente uma lei das águas, sua concepção precisaria ser ampliada para abranger as demais formas de presença da água nos oceanos e mares, nas nuvens, nos corpos vivos etc.

A visão utilitarista que está na sua origem ou DNA tem repercussões em toda a política e na gestão que  se faz baseada no texto legal.  Quando se deseja proteger um curso d’água como patrimônio é necessário recorrer a outras legislações, tais como os planos diretores, na lei  urbanística, e o tombamento, na legislação relativa ao patrimônio cultural. Caso venha a se ecologizar a legislação brasileira de recursos hídricos, alterar o seu DNA e sua concepção ela poderá,  à maneira da diretiva quadro das águas europeia, valorizar seus aspectos ecológicos e de proteção do patrimônio.

 

 

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