segunda-feira, 9 de junho de 2025

ÁGUA, ARQUITETURA E AMBIENTE CONSTRUIDO -capítulo de livro sobre HIDROSOFIA

 

ÁGUA, ARQUITETURA E AMBIENTE CONSTRUIDO -capítulo de livro sobre HIDROSOFIA

ARTES ESPACIAIS

Arquitetura, urbanismo, design e mobiliário, além de peças teatrais, espetáculos públicos tais como os desfiles de escolas de samba, podem ser considerados artes espaciais, pois lidam com a organização, transformação e interação do espaço físico em diferentes escalas e contextos. A noção de artes espaciais está associada à criação de formas que estruturam, modelam e dão significado aos espaços habitados, integrando funcionalidade, estética e sensibilidade.

As artes espaciais exploram a dimensão tridimensional.  Elas consideram como o corpo humano percebe e se move pelo espaço.  Além de resolver problemas práticos, buscam gerar sensações e emoções por meio da estética. Modificam a relação entre o espaço e seus usuários, seja em edifícios, cidades, interiores ou objetos.

Embora todas sejam consideradas disciplinas de caráter funcional, elas possuem uma forte base artística, muitas vezes complementadas por outras formas de arte, como a pintura e a escultura. Porém, sua diferença está na maneira como integram a funcionalidade prática com a experiência espacial, tornando-se fundamentais para a construção da vida cotidiana.

Portanto, arquitetura, urbanismo, design e mobiliário espetáculos teatrais, desfiles exemplificam como essas artes podem criar cenários e paisagens culturais e moldar as relações humanas com o espaço físico e social.

A água, com sua natureza fluida, simbólica e funcional, desempenha um papel essencial na arquitetura, no urbanismo, no design, no mobiliário, na escultura e em outras artes espaciais. A relação entre essas disciplinas e a água é tanto prática quanto estética, envolvendo questões funcionais, ambientais e culturais.

A água age como uma força de integração nas artes espaciais, conectando a funcionalidade prática ao significado simbólico. Sua presença cria paisagens vivas e mutáveis, reflete questões ambientais e culturais e oferece novas possibilidades de interação entre pessoas, espaço e natureza.

 ESCULTURA

A água frequentemente inspira esculturas que representam temas de fluxo, vida e transformação. Muitas esculturas interagem diretamente com a água, seja por meio de fontes que integram o movimento ou por meio de obras submersas, como esculturas em recifes artificiais. 

 


A fonte é um elemento estético e umidificador do ar em Brasília.

Fontes luminosas, espetáculos de som e luz, usam a água como elemento visual e sonoro. Em esculturas a água pode ser transformada em arte dinâmica, incorporando elementos de tecnologia, física e interação humana.



A escultura de Shiva em meditação sob uma cortina de água no Jnana Mandiram em Brasília.



Cortinas d’água criam ambiente repousante em shopping center em Uberaba, Minas Gerais.


A Fontana di Trevi em Roma é uma atração que encanta milhões de turistas.

Obras com água corrente ou que exploram temas aquáticos, como as fontes de Bernini em Roma, destacam a força e a beleza do elemento. Olafur Eliasson, artista contemporâneo, é conhecido por suas instalações que exploram a luz, a água e a percepção humana. “Light and Water" (Luz e Água) - "The Weather Project" na Tate Modern em Londres é um exemplo, com um imenso sol artificial que reflete na água para criar uma atmosfera etérea.

"Water Light/Water Needle" (Luz d'Água/Agulha d'Água) - Rafael Lozano-Hemmer: Esta instalação interativa usa feixes de luz e jatos de água em movimento controlados por computador. As pessoas podem interagir com a obra, criando padrões e formas de luz na água.

 Esculturas feitas com água são obras inovadoras que utilizam esse elemento dinâmico como material principal, muitas vezes em combinação com tecnologia e design artístico.  Entre as principais esculturas feitas com água estão a "Water Maze" de Jeppe Hein. No Reino Unido, essa escultura interativa cria labirintos de água com jatos controlados eletronicamente. As paredes de água mudam de forma, permitindo que os visitantes entrem e explorem a obra. "Aqualens" - Niklas Troxler;"Digital Water Pavilion" - Carlo Ratti Associati; "Water Trees" e."Charybdis" de William Pye "Fountain of Wealth" - Cingapura

O uso da água e da luz como elementos centrais em obras de arte é comum e pode ser encontrado em várias formas de expressão artística, desde pinturas até instalações e esculturas contemporâneas.

ARTES CÊNICAS

As artes cênicas têm um forte potencial para a sensibilização e para expandir a consciência.  Peças e coreografias muitas vezes usam água como tema ou elemento cênico, seja em forma de chuva artificial ou simbolizando emoções profundas. Cenários aquáticos são comuns em histórias trágicas ou mitológicas, como Das Rheingold, de Wagner.

O espetáculo artístico e cênico montado na abertura das Olimpíadas no Rio de Janeiro teve o poder de comunicar temas climáticos e hídricos para bilhões de pessoas.

 Os desfiles de escolas de samba são manifestações artísticas com dança, música, cenografia, figurino, com forte poder de comunicação.  Várias escolas de samba já usaram a água como tema central de seus enredos, destacando sua importância como elemento natural, cultural e espiritual. Alguns exemplos: Beija-Flor de Nilópolis (2004): Com "Manôa, Manaus, Amazônia, Terra Santa", o desfile apresentou a riqueza hídrica da Amazônia e trouxe reflexões sobre a preservação dos rios e florestas; Mancha Verde (2021): Com o enredo "Planeta Água", inspirado na música de Guilherme Arantes; Aparecida (Manaus, 2023): Em "Vitae: a essência, a seiva, a fonte", a escola abordou a água como elemento essencial à vida, celebrando sua presença em ciclos naturais e culturais​.

A encenação de peças teatrais sobre temas hídricos ajuda a expressar os vários interesses em jogo. Para lidar com conflitos e disputas de interesses essas teatralizações são reveladoras.

Várias obras de artes cênicas, teatro e dança mostram como a água pode ser utilizada como metáfora ou elemento narrativo, contribuindo para temas poéticos, ambientais e existenciais e que têm uma relação direta com a água como tema ou elemento central. Exemplos:  "A Marca da Água" (Armazém Companhia de Teatro) Armazém Companhia de Teatro; "Águas" (Grupo Obragem de Teatro)RIC.com.br; "Rio que Passa Lá" (Companhia Último Tipo) Direção Cultura; "Água e Performatividade" (SP Escola de Teatro) SP Escola de Teatro
.Em instalações artísticas, artistas contemporâneos criam instalações interativas que envolvem água como elemento central, como reflexos em superfícies líquidas ou o uso de gelo em derretimento para simbolizar questões ambientais. Obras que combinam dança, arquitetura e água exploram a interação do corpo humano com o elemento líquido em um espaço tridimensional.

Muitos festivais e eventos ao redor do mundo têm a água como tema central, destacando sua importância cultural, ecológica ou espiritual. Esses festivais ajudam a destacar a conexão das pessoas com a água, seja do ponto de vista espiritual, cultural ou ambiental, além de promover a conscientização sobre sua importância para a vida no planeta. Destacam-se entre eles o World Water Week (Estocolmo, Suécia); Festival Songkran (Tailândia); a Kumbh Mela (Índia), o maior festival religioso do mundo, onde milhões se banham em rios sagrados, como o Ganges, para purificação espiritual; o Water Festival (Camboja e Laos); o Festival das Águas (Brasil) celebrado em Manaus e outros locais na Amazônia, promovendo a conscientização sobre a água e sua preservação; o Festival do Rio Sagrado (Peru) com foco na agricultura e na espiritualidade.

A água é usada em atos de purificação, como a Lavagem do Bonfim em Salvador, em que devotos lavam as escadarias da igreja com água perfumada.

HIDRODRAMA E CULTURA DE PAZ

As artes cênicas são um tipo de manifestação artística valioso para dramatizar os conflitos e encontrar modos não violentos de resolvê-los. Durante vários anos ofereci workshops sobre Cultura ambiental e cultura de paz em cursos da UNIPAZ no Rio de Janeiro, em Goiânia e Belo Horizonte. Um dos exercícios para a resolução deles, que praticamos com os aprendizes, foi o de simular conflitos pela água e criar formas de resolvê-los de forma não violenta.

Os psicodramas são valiosos para os psicólogos simularem situações e colocarem os participantes para assumirem papéis distintos daqueles que desempenham na vida real. Por meio desses exercícios pode-se sentir os pontos de vista dos outros e desenvolver capacidade de diálogo e de compreensão mútua.

Da mesma forma como os psicólogos, por meio de psicodramas e cosmodramas, simulam as relações entre diversos atores, os hidrodramas revelam tensões e conflitos e descobrem modos de lidar com eles, construtivamente.

Hidrodramas são psicodramas ou representações teatrais de situações de conflitos.  Na fase de preparação, o diretor do hidrodrama sugere os temas aos participantes. Indica alguns dos papéis em que devem atuar. Propõe que se organizem em grupos de acordo com o tema de seu interesse e que preparem uma história sobre aquele tema. Esses grupos concebem as situações e como cada ator se comporta. Cada pessoa assume um papel e se coloca no lugar de outros atores: um representa o ambientalista, outro é o cidadão reclamante, o poluidor, o fiscal, a polícia, outros atores sociais. Os participantes se envolvem emocionalmente e com sensibilidade nos seus papéis e, com isso, têm uma percepção vivenciada das situações de conflitos que surgem na vida real. Esse distanciamento ajuda a tomar consciência do ponto de vista de um ator distinto e a melhor compreendê-lo.

Cada ator traz para o palco os conhecimentos de que dispõe sobre o tema e o que imagina que sejam as respostas para os conflitos focalizados. Em seguida, cada sketch é apresentado para o restante do grupo. A representação envolve criatividade, arte, capacidade de representar papéis, e gera um ambiente de leveza. O teatro ajuda a dar um clima lúdico a temas que frequentemente envolvem conflitos sérios.

O exercício do hidrodrama simula uma disputa entre diversos usos: agricultura, abastecimento humano, saneamento, turismo, indústria, hidrovia, pesca. Além dos usuários, são representados os órgãos gestores, comitês e agências de bacias. É um modo leve de promover a compreensão sobre os diversos interesses envolvidos no tema e de usar a criatividade para solucioná-los.

Nessas encenações a representação dramática ajuda a expandir a consciência. Estimulam a imaginação, a espontaneidade, a criatividade artística, a desinibição de representar papéis diante do grupo. Têm papel liberador. Permitem a expressão e dramatização de conflitos, de forma comunicativa. Por meio deles, a solução de conflitos se beneficia dos conhecimentos da cultura de paz.

O hidrodrama é instrumento pedagógico e educacional. Sensibiliza e leva à tomada de consciência e dos conflitos neles envolvidos.

Música, dança, teatro, expressão verbal e literatura, são manifestações artísticas aplicadas num hidrodrama. Eles retratam conflitos relacionados com a convivência de interesses divergentes numa vizinhança local, regional ou nacional. O hidrodrama ajuda a compreender e a valorizar a hidro ação. Os atores distanciam-se da ego-ação, movida por interesses econômicos ou de poder, por sentimento de orgulho, vaidade, inveja, competição. Desvestem-se os papéis pessoais, cria-se um clima de distanciamento da situação real de vida e de envolvimento com outro papel social.

No hidrodrama os atores colocam seu talento, conhecimentos e criatividade a serviço da cultura de paz e da promoção de uma convivência humana harmoniosa. Por meio desse exercício pode-se vivenciar e sentir os pontos de vista dos outros e desenvolver capacidade de diálogo e de compreensão mútua. O hidrodrama é um instrumento pedagógico e educacional. Sensibiliza e leva à tomada de consciência. Ele permite a expressão e dramatização de conflitos, de forma comunicativa.

Outra fase do hidrodrama é o compartilhamento das experiências da representação. Integrantes do grupo revelam aos demais o que sentiram ao representar seus papéis. Cria-se empatia com as situações vividas e capacidade de compreendê-las, com menos prejulgamentos e preconceitos. Descondiciona-se a mente dos papéis e máscaras da vida real. A mudança emocional e dos sentimentos provoca transformações que ajudam a preparar para resolver situações de conflitos de modo não violento.

ARQUITETURA

A arquitetura é a principal expressão das artes espaciais. Ela organiza o espaço tridimensional, considerando aspectos como proporção, textura, escala e funcionalidade. Ao projetar edifícios e estruturas, os arquitetos criam experiências espaciais que influenciam a maneira como os usuários interagem com o ambiente construído. A arquitetura envolve arte, ciência, técnica construtiva, domínio dos espaços, da sombra e da luz.

Muitas vezes está associada à pintura (por exemplo a obra de Michelangelo na Capela Sistina no Vaticano), à escultura (as estátuas dos templos gregos e hindus), ao paisagismo, ao urbanismo, às artes do mobiliário, à tapeçaria.



Piscina integrada ao paisagismo num hotel à beira mar em Salvador na Bahia.

A água condicionou historicamente a arquitetura. A água é frequentemente integrada aos edifícios por meio de cisternas, fontes, espelhos d’água e sistemas de coleta de chuva. Fontes, piscinas e cascatas são usadas para criar uma conexão visual e auditiva com a água, promovendo calma e bem-estar.  Esses elementos desempenham, ainda, papéis práticos.



Um espelho d’água reflete a imagem do Taj Mahal, em Agra, na Índia.

Entre as obras de arquitetura mais conhecidas que utilizam a água como elemento central estão a Ópera de Sydney (Austrália). a Casa das Cascatas (Fallingwater, EUA) projetada por Frank Lloyd Wright, o Museu de Arte Islâmica (Qatar) o complexo futurista de Marina Bay Sands (Singapura), os Jardins Flutuantes de Lily Pads (França), a Biblioteca de Alexandria (Egito), o Museu Guggenheim Bilbao (Espanha). A água é integrada em projetos monumentais, a exemplo do Taj Mahal na Índia, o Alhambra na Espanha ou o Palácio do Itamaraty em Brasília.

Os modos de se construir variam conforme se esteja num clima seco ou úmido, quente ou frio. No clima gelado do ártico, os iglus dos esquimós são casas feitas de água em estado sólido, o gelo que ali é abundante.

Construções são adaptadas ao ambiente hídrico ou ao clima, como as palafitas em áreas alagadas ou os sistemas de ventilação natural que usam a água para resfriamento.



Nos palácios islâmicos, na Índia, a água foi usada para amenizar a secura do ar e dar conforto ambiental.

. Em climas secos e desérticos busca-se trazer umidade para o ambiente construído e melhorar o conforto ambiental.

 


As fontes em jardim no palácio em Udaipur, na Índia, têm função estética e funcional, para umedecer o ar. Na arquitetura árabe, fontes e lagos nos jardins e no interior das casas umedecem o ambiente e proporcionam conforto ambiental e térmico. Nela, a captação de água de chuva e seu depósito em cisternas é uma prática milenar. 

No planalto central brasileiro umidificadores de ar são valiosos para melhorar o bem-estar nos períodos secos.  Em Brasília, espelhos d’água umedecem o ambiente nos períodos quentes e secos e a evaporação no lago do Paranoá ameniza a secura.

Em muitas partes, foram construídas palafitas, casas sobre as águas.

Em climas úmidos, é um objetivo evitar o contato excessivo dela com a edificação. Beirais e varandas reduzem o desgaste causado nas construções pela água de chuva; azulejos protegem paredes, fachadas e áreas úmidas internas, tais como banheiros e cozinhas A proteção interna contra a umidade provê higiene e salubridade, evitando as doenças relacionadas com o ambiente interno úmido. A ventilação natural e a entrada de luz solar são recursos valiosos para reduzir a umidade. Telhados e coberturas bem construídos protegem o interior das casas das indesejáveis goteiras durante chuvas fortes. Para evitar que suba por capilaridade pelas paredes, as casas são projetadas suspensas do solo.  

No contexto da adaptação às emergências climáticas, a água tem importância redobrada para a arquitetura e a construção de abrigos e requer reforços nas estruturas para resistir aos eventos climáticos extremos.

No Japão rural, a água condiciona a escolha de áreas para se construir. Evita-se a construção em declives onde há enxurradas fortes e evita-se construir nos fundos de vales úmidos e insalubres, sujeitos a enchentes.

Nas edificações, as águas usadas têm diferentes qualidades: as cinzas passaram pelo chuveiro e lavabo e podem ser reaproveitadas em usos que necessitam menor qualidade; águas negras passaram pelos vasos sanitários. Elas são diferenciadas: as águas amarelas receberam urina e as marrons receberam fezes. Elas podem ser tratadas e reaproveitadas para usos menos exigentes.

Projetos de casas autônomas fazem com que elas se auto abasteçam. Biopiscinas são crescentemente usadas, com tratamento biológico. Em ecovilas, sanitários secos e tratamento biológico são soluções adotadas.

 

 

 

 

 

 

 



Numa ecovila em Pirenópolis, Goiás, experimenta-se o sanitário seco e o tratamento biológico da água.

Em contextos rurais em que não há energia elétrica ou outro meio para bombear, a escolha de onde construir leva em consideração o essencial abastecimento por gravidade.

Paredes hidráulicas com as tubulações internas de cozinha e banheiro são soluções de projeto mais econômicas.

Na bacia do Piracicaba-Capivari-Jundiaí - PCJ construiu-se casa modelo para uso racional de água e energia elétrica, envolvendo as áreas de construção civil, arquitetos e engenheiros. Estimou-se que tal casa pode economizar até 60% no consumo.

A legislação de construções de Curitiba criou o programa de conservação e uso racional da água nas edificações. A água de chuva coletada é usada para todos os usos não potáveis. Isso reduz a conta a ser paga e o volume que escorre nas enxurradas.  Para dar melhor aproveitamento às águas, alguns municípios tornam obrigatória a implantação de sistema para retenção de águas pluviais coletadas por telhados, terraços, coberturas e pavimentos descobertos, em lotes que tenham área impermeabilizada. As licenças para os parcelamentos do solo, projetos de habitação, obras e instalações ficam condicionadas ao cumprimento dessas normas.

Um modo de atuar junto a usuários é educá-los pelo bolso. Para reduzir desperdícios, alguns municípios adotam códigos de obras que exigem a hidrometração individual, na qual cada um paga pelo que consome. A instalação de hidrometria individualizada em cada domicílio pode reduzir consumos, já que a conta é mais alta para quem gasta mais.  A hidrometração coletiva induz ao desperdício, pois a conta é rateada num valor médio entre todos e quem consome mais paga relativamente menos.

Alguns municípios adotam programas de conservação e uso racional e reuso em edificações, visando a reduzir desperdícios. Outros municípios têm hidratado a legislação municipal de uso e ocupação do solo, códigos de obras e de posturas, o que pode torná-los cidades hidricamente conscientes, que sintonizam a legislação urbanística com a legislação de recursos hídricos.

Em contextos urbanos modernos há relação entre o gasto de água e o de energia para seu aquecimento.

Coletores solares para aquecer água economizam na conta de energia e reduzem o consumo, ao reduzirem as distâncias para ela chegar quente aos chuveiros.  Em novos projetos, esse é um recurso valioso.

O arquiteto hidroconsciente pode atuar em várias frentes: ao conceber o projeto arquitetônico de modo integrado com o projeto hidráulico e de uso de energia solar; ao especificar componentes da construção que economizem ou reusem, ao aproveitar água de chuva, ao influir na aprovação de legislação municipal de obras que induza a economia, seu aproveitamento e reuso. Retrofits, ou reformas para tornar as edificações antigas mais eficientes, são um dos métodos para adaptá-las a tempos em que ela se torna escassa e mais cara.

Há a necessidade de aprender como reduzir o consumo e desenvolver tecnologias que levem à redução de desperdícios. Os arquitetos e engenheiros podem projetar ambientes construídos que se relacionem de modo harmônico com a água e nos quais ela esteja integrada.

MUSEUS, AQUÁRIOS E OCEANÁRIOS

Diversos museus, aquários e oceanários ao redor do mundo exploram a temática da água e contribuem para a hidroalfabetização, cada um com seus enfoques próprios. https://www.watermuseums.net/


Crianças brincam com o fluxo das águas em espaço educacional perto de Amsterdã, na Holanda.


O Museu da Água de Lisboa é um equipamento cultural que recebe crianças para a sua hidroalfabetização.

Destacam-se o Museu da Água de Lisboa (Portugal) que apresenta a história do abastecimento de água na cidade desde a época romana até os dias atuais. O Museu das Águas Brasileiras (Brasil): Um museu virtual ligado à Universidade Federal do Tocantins, criado em 2023,  dedicado à sustentabilidade e à gestão da água (ver Palmas UFT) O Museu Planeta Água (Brasil): Situado em Curitiba, o museu combina educação ambiental e tecnologia para conscientizar o público sobre a importância da preservação da água, com exposições interativas e programas educativos​ Museu Planeta Água . A rede de museus globais da UNESCO Water Museums Network que abordam a água como patrimônio cultural e natural. https://www.watermuseums.net/ No Porto, (Portugal) está um desses museus. ver Porto Water & Energy O Museu da Água de Estocolmo (Suécia): conhecido como "Aquaria Water Museum", este espaço combina educação sobre o ciclo da água com aquários que exibem ecossistemas aquáticos​.

Na Califórnia, museus de ciência e tecnologia, museus de história natural, aquários, jardins botânicos e outros equipamentos cumprem o valioso papel de complementar a educação e consolidar a cultura hídrica e científica de adultos e crianças. A hidro alfabetização se completa nesses museus e centros de cultura de forma lúdica e vívida.

Por meio dos recursos de expressão e comunicação museográficos - iluminação, cenários, filmes, vídeos, design de objetos, maquetes etc. – os frequentadores se expõem a uma variedade de informações que enriquecem sua experiência e que fortalecem sua base de conhecimento hídrico, ecológico, cultural e científico. Acompanhadas de familiares, de seus colegas na escola e professores, as crianças dispõem ali de ambientes que facilitam a absorção de conhecimentos. Os museus, aquários, centros de cultura, de ciência e tecnologia contam com a colaboração voluntária de idosos e de professores aposentados. Ali eles aplicam seus conhecimentos de toda uma vida e auxiliam as crianças a saciarem sua curiosidade. A interação forte entre idosos, adultos, jovens e crianças cria um ambiente humano rico para a aprendizagem. Crianças que desde cedo vivenciam e experimentam tais situações têm maior facilidade para aprenderem.

O aquário de Monterey é um dos melhores do mundo; o da Academia de Ciências da Califórnia em San Francisco mostra vitrines da vida aquática e marinha.

Os museus e equipamentos culturais congêneres não precisam ser monumentos arquitetônicos espetaculares que se destacam na paisagem urbana. Podem instalar-se em prédios restaurados e com funções alteradas e exibirem dentro de si conteúdos relevantes, dispostos de modo convidativo e amigável, para facilitar o aprendizado e sua absorção cultural pelos frequentadores.

É relevante o papel de desenvolvimento cultural, científico e ecológico desempenhado por tais equipamentos. Museus, jardins botânicos e centros de cultura têm função complementar à das escolas. Eles aceleram e facilitam a aprendizagem.



O Inhotim, museu de arte contemporânea a céu aberto, em Brumadinho, Minas Gerais, dispõe de vários espelhos d’água que valorizam sua paisagem. 



O AquaRio é um aquário intensamente visitado onde se aprende sobre a vida na água, no Rio de Janeiro.

 

 


 

A balança hídrica num centro de educação em Bangalore, na Índia, mostra a quantidade de água que existe dentro do corpo de quem se pesa nela.

 

Museus de ciência e tecnologia têm importante papel ao chamar a atenção para o fato de que nossos corpos são constituídos em sua maior parte de água.

Vivi, certa vez, uma experiência educativa inesquecível, ao pesar-me em uma balança hídrica, instalada em um museu de ciência e tecnologia no Japão. Quem sobe na balança acoplada lê o seu peso e vê cair em um recipiente uma expressiva quantidade de água. Ao lado da balança hídrica, uma placa informa: “A água corresponde a 70% do peso de cada ser humano. A quantidade de água à sua frente corresponde à quantidade existente no seu corpo.” [1]

Essa experiência facilita a compreensão de que o corpo de cada ser vivo é parte do ambiente.

Usar uma balança hídrica é uma experiência educativa prazerosa, impactante e de fácil assimilação, que desperta o autoconhecimento das pessoas, desde os primeiros anos de idade. O uso da balança hídrica conscientiza sobre a importância da água na vida humana; mostra que o corpo de cada ser vivo é, também, um corpo hídrico; desperta, de forma lúdica, a consciência dos seres humanos de pertencerem à natureza e aos elementos naturais e ambientais.

Balanças hídricas podem ser instaladas em museus de ciência e tecnologia, escolas, universidades, instituições públicas, praças, shopping centers, entre outros. Seria valioso implantar em muitas cidades brasileiras sujeitas a crise hídricas esse instrumento pedagógico amplamente usado na Índia, no Japão e em outros países.  Seu design pode ser funcional e econômico.

Além de museus, os oceanários são espaços para explorar o mundo subaquático, que combinam educação, entretenimento e conscientização ambiental, e entre eles se destacam o Oceanário de Lisboa (Portugal); No Rio De Janeiro, há o AquaRio na região do porto. Georgia Aquarium (Atlanta, EUA); o Chimelong Ocean Kingdom (Zhuhai, China), considerado o maior do mundo, o Dubai Aquarium & Underwater Zoo (Emirados Árabes Unidos); o Okinawa Churaumi Aquarium (Japão): o Vancouver Aquarium (Canadá).

 

JARDINS CALIFORNIANOS

 

A Califórnia formulou um planejamento estratégico para lidar com a seca, aumentando a oferta de água e reduzindo a demanda, com o mínimo de prejuízos ao bem-estar. Com relativamente pouca chuva e muita gente, o sul do Estado planeja há muitos anos a conservação e controle de uso. No campo da redução da demanda, um dos importantes instrumentos para a adaptação à seca e a conservação está no campo da jardinagem e do paisagismo.

As cidades americanas, seus subúrbios e bairros residenciais são conhecidos pelos extensos jardins e gramados verdes. Os versos de Leminski em Verdura, cantada por Caetano Veloso lembram que

Eles têm carro
eles têm grana
eles têm casa
a grama é bacana.

Os tradicionais gramados verdes característicos das cidades americanas são altamente consumidores. Num contexto de seca, a grama deixa de ser bacana, e valorizam-se outros modelos de paisagismo. Incentivam-se novos padrões estéticos de jardins, cuja aplicação leva à conservação de água.

  Na Califórnia, as pessoas foram estimuladas com dinheiro a substituir por cactáceas e suculentas as plantas dos jardins que demandam mais água para sobreviverem e florescerem.



Jardins com cactáceas e suculentas economizam água e são adotados em campus universitário na Califórnia.

O Estado da Califórnia instituiu programas de reembolso (grants, rebates) para os moradores que modificam seus jardins e quintais, que retiram a grama e substituem plantas por outras que precisam de pouca água. Programas de reembolso dos governos locais, tais como aquele lançado pelo Departamento de Água e Energia de Los Angeles, pagam aos moradores uma quantia proporcional à área do terreno que foi ajardinada com plantas adequadas, reduzindo a demanda. Um paisagismo sábio substitui vegetação sedenta.

As propostas dos moradores para a substituição das plantas são pré-aprovadas. Funcionários do governo inspecionam as mudanças feitas e liberam os recursos do reembolso aos moradores. Para que os reembolsos sejam feitos de modo correto, esse programa depende de confiança e de não existirem fraudes entre os funcionários públicos e os moradores.  Da mesma forma, as floras comerciais, que produzem e vendem mudas para os jardins e quintais, recebem incentivo econômico pela venda de plantas que ajudam a poupar.

 

 


Na Califórnia implanta-se programa de substituição de jardins, para economizar água.

Campanhas de divulgação, com folhetos em inglês e em espanhol, recomendam regar jardins de manhã cedo, instalar irrigação por gotejamento, coletar e usar chuva e usar plantas nativas tolerantes à seca.

Isso foi feito complementarmente a trabalhos de reeducação estética, conduzidos nos jardins botânicos, revalorizando as plantas nativas daquela região e substituindo gramados cuja manutenção exige muita água. O programa de redução da demanda por meio do plantio de jardins é sustentado por uma base consistente de conhecimentos sobre botânica, paisagismo, clima e técnicas de uso na irrigação de plantas. Universidades, centros de pesquisa e jardins botânicos produzem o conhecimento necessário, aplicam-no em seus jardins e o divulgam em programas de educação sobre as plantas e suas demandas de água. Pratica-se o uso consciente e de forma estética de plantas nativas, adaptadas a cada bioregião e ecossistema.


A CIDADE E O CICLO DA ÁGUA

Todas e cada uma das cidades precisam de água para viver. As atividades urbanas, tais como a indústria, o comércio, os serviços e os transportes precisam dela para funcionar. Ela é um elemento fundamental para a vida urbana. Muitas cidades se localizam junto a rios, lagos ou na região costeira.

As cidades são ecossistemas urbanos que interagem com o entorno: consomem alimentos e devolvem seus rejeitos para o ambiente externo; consomem energia que pode vir de dentro da própria cidade ou de fora dela.  Consomem o ar e o devolvem poluído para o ambiente externo. Se abastecem por meio de mananciais e fontes fora das cidades que são trazidas por encanamentos ou aquedutos. E se abastecem com água de chuva captada nos telhados ou com água subterrânea bombeada de poços e cisternas. Frequentemente a devolvem poluída ao ambiente, de qualidade inferior àquela que foi captada para o abastecimento urbano.



O ecossistema urbano se abastece de água do ambiente regional e a devolve ao ambiente, frequentemente com pior qualidade.

A cidade altera o ciclo e o movimento da água. Ela impermeabiliza o solo com concreto e asfalto, o que dificulta a infiltração e a alimentação dos lençóis freáticos. As enxurradas tendem a ser cada vez mais intensas e frequentes e exigem maiores redes de drenagem. O risco de rupturas desastrosas  em córregos e ribeirões encaixotados tende a aumentar. Grande parte da infraestrutura hídrica nas cidades é subterrânea:  tubulações prediais, redes de abastecimento, redes de coleta de esgoto, redes de drenagem estão fora das vistas do cidadão e são pouco conhecidas.  Prestar atenção aos bueiros ajuda a compreender essas águas subterrâneas urbanas. As cidades transformam águas superficiais em águas subterrâneas canalizadas.

A cidade gera calor, com suas atividades.  A formação de ilhas de calor sobre as cidades aumenta a evaporação e transforma águas superficiais em águas atmosféricas. Mais vapor d’água na atmosfera resulta na precipitação de chuva sobre as cidades e agrava as inundações urbanas.  Essa combinação de ilhas de calor com impermeabilização dos solos aumenta os riscos das inundações causadas por águas superficiais.

Durante muito tempo, no Brasil, a água foi considerada abundante e barata. No planejamento urbano não se deu valor a ela. Cidades deram as costas a ela. Os córregos, ribeirões e rios serviram para o despejo de esgoto in natura e de lixo.  Parte dos rios brasileiros está poluída, especialmente por esgotos urbanos.   A disponibilidade total é reduzida devido à poluição.

Com o aumento da população e das atividades econômicas, a oferta de água tende a decrescer, ao passo que a demanda cresce. Cidades vivem passam a viver em situações de estresse hídrico e com riscos de desabastecimento.

Na história, há muitos exemplos de cidades que entraram em colapso para se abastecerem. Fatehpur Sikri, construída para ser a capital do império mogol, na Índia, é um exemplo disso. Foi abandonada antes de ser habitada, devido à falta de água causada por mudanças climáticas. Hoje é uma atração turística, incluída nos espaços considerados como patrimônio mundial pela UNESCO.  Quando a capacidade de suporte atinge seu limite, é preciso desurbanizar, desadensar, migrar as atividades para outros lugares e em caso extremo, abandonar a área devido à falta dela. A civilização maia sucumbiu a uma seca e a mudanças no clima.

Na urbanização brasileira as primeiras prioridades dos cidadãos são obter o terreno e a moradia. Muitas vezes invade-se um terreno, ocupa-se o solo, constrói-se, instala-se um bairro, cria-se um fato consumado. Fura-se uma cisterna. Ao final, a pressão social consegue regularizar a área e implantar a rede de abastecimento.  A água é vista como um problema menor que pode ser resolvido depois.  Na falta de terrenos seguros, devido ao seu alto custo, ocupam-se terrenos inseguros, em fundos de vale ou encostas de morros. Quem neles vive se arrisca a ser soterrado em deslizamento de encosta ou numa inundação de fundo de vale.  Reduzir desigualdades econômicas e sociais pode reduzir perdas de vidas e perdas econômicas em desastres desses tipos.

Para se implantar uma nova cidade, um novo loteamento ou parcelamento do solo para fins urbanos, é preciso considerar em primeiro lugar a existência de água. Antes de urbanizar, é preciso estudar o potencial hídrico, as fontes de abastecimento, conhecer a disponibilidade e a capacidade de atendimento ao longo do tempo. Sem ela não há cidade. 

A pesquisa ambiental e a geração de conhecimentos locais constituem um pré-requisito para elaborar os projetos e sua posterior execução.

Conhecimentos sobre o local em que serão implantados bairros ou cidades, por meio de pesquisas e levantamentos técnicos, são pré-requisitos para a elaboração dos projetos, das normas urbanísticas de uso e ocupação do solo. É útil nesse contexto produzir conhecimento sobre a infiltração de chuva coletada nos telhados das casas e pesquisar os tipos de pavimentação para permitir infiltrar chuva no terreno ao invés de deixar que se escoe.

A estimativa da capacidade de suporte ou de carga de um ambiente e do limite máximo a partir do qual se gera o estresse hídrico, ambiental e a insustentabilidade, são parte do planejamento e gestão urbana.

Os cidadãos ativos, despertados quando sentem na pele o drama da falta ou o excesso durante as inundações, influenciam as prioridades dos governos.

Novas cidades, bairros ou condomínios precisam ser hidroconscientes desde o momento da concepção do projeto até cada etapa de sua implementação.

URBANISMO

No mundo, 3,5 bilhões de pessoas moram em cidades. No Brasil mais de 160 milhões são cidadãos urbanos.

Muitas cidades são criadas junto à água como rios, lagos e mares. Nova York, Rio de Janeiro, Mumbai, Chennai, Udaipur, Shanghai, Tóquio e muitas outras. O caso mais conhecido é Veneza é uma cidade inteira cercada pelas águas.



O lago de Udaipur, no Rajastão, na Índia, tem campanhas para sua despoluição.

A água se torna assunto de urbanistas e planejadores quando falta, quando se apresenta com má qualidade ou quando seu excesso causa inundações nas cidades. Então, toma-se consciência de sua importância. Desperta-se para a necessidade de cuidar bem dela, preservá-la e proteger as fontes de abastecimento.

Escolas e centros de pesquisa e inovação têm um papel relevante na formação profissional. A importância do trabalho de arquitetos e designers nesse campo justifica que, nas universidades, sejam tratadas as questões da captação de água de chuva, de como ela se comporta no seu ciclo, quando escorre nas superfícies, se infiltra no solo, evapora e está presente na atmosfera.

A água pode ser utilizada como um elemento estético, funcional e simbólico em projetos de paisagismo como se usou no monumento em homenagem às vítimas do terrorismo em 11 de setembro em nova Iorque, que derrubou as torres gêmeas.



A cortina d’água presta uma homenagem às vítimas do terrorismo nas torres gêmeas em Nova Iorque.

 

O paisagismo japonês se destaca com seus lagos, trutas e sua cuidadosa disposição da vegetação. No mundo várias obras de paisagismo são bem reconhecidas pela presença da água tais como os Jardins de Versalhes (França), os palácios mouros de Alhambra e Generalife (Espanha), o Jardim de Monet em Giverny (França), o Yuyuan Garden (em Xangai, China)



Arquitetura, artes plásticas, paisagismo integram a Igreja da Pampulha em Belo Horizonte.

Roberto Burle Marx é o grande nome do paisagismo brasileiro, com obras na lagoa da Pampulha em Belo Horizonte, nos palácios de Brasília, no Parque do Ibirapuera (Brasil) e muitos outros. Rosa Kliass e Fernando Chacel também se destacaram como paisagistas. Além dos conhecimentos de botânica, de biologia, eles fizeram uso das águas como espelhos para valorizar as cidades e as obras de arquitetura.

A água pode integrar-se ao urbanismo de diversas formas, promovendo sustentabilidade, bem-estar e valorização estética dos espaços urbanos. Integrar a água no urbanismo pode mitigar impactos ambientais, melhorar a qualidade de vida e promover cidades mais sustentáveis e resilientes.

Cidades como Medellín (Colômbia) revitalizaram rios para criar espaços de lazer e áreas verdes. Esses projetos ajudam a controlar enchentes e melhorar a qualidade da água. Em Curitiba, o Parque Barigui e outros parques funcionam como áreas de contenção de água e espaços recreativos.

Sua valorização está presente nos lagos urbanos da Pampulha em Belo Horizonte e do Paranoá, em Brasília, que seriam cidades diferentes se não fosse a presença planejada da água; na arquitetura, os espelhos d’água valorizam o espaço e o paisagismo e ajudam a umidificar e dar conforto ao ambiente construído.

As pontes construídas em cidades para transpor corpos d’água são oportunidades para a valorização estética. A terceira ponte, em Brasília, representa o movimento de uma pedrinha lançada sobre a água.

 


A terceira ponte sobre o lago Paranoá em Brasília.



Na ponte sobre o rio Arno em Florença há muitas lojas comerciais.



A ponte Golden Gate com a cidade de São Francisco ao fundo, nos EUA.

 

Projetos como o Floating Farm em Roterdã integram a água ao design urbano para lidar com o aumento do nível do mar. Habitações que se adaptam a enchentes são usadas em regiões como Bangladesh e Países Baixos. Infraestruturas como o Delta Works nos Países Baixos protegem áreas urbanas contra inundações. O Superkilen Park em Copenhague combina design e funcionalidade, com áreas que captam água da chuva.

Superfícies permeáveis, jardins de chuva e pavimentos drenantes ajudam a reduzir alagamentos e a reabastecer aquíferos. Cidades como Cingapura lideram em reciclagem de água para consumo e irrigação.

Veneza e Amsterdã são exemplos icônicos de urbanismo integrado à água. Outras cidades, como Bangkok, também utilizam canais para transporte e turismo.



O canal em Amsterdã serve também para o transporte hidroviário urbano.

 


A gôndola é uma atração turística e um meio de transporte em Veneza.

 


O canal do Jardim de Alah, no Rio de Janeiro, conecta ao mar a lagoa Rodrigo de Freitas.

Sistemas de drenagem são essenciais para o manejo da água em áreas urbanas. Planejamentos modernos de cidades incluem o uso de água em espaços públicos, como parques lineares e canais, promovendo lazer e conexão com a natureza. Incorporam soluções baseadas na água, como wetlands urbanos e sistemas de retenção de enchentes. A presença da água em praças, parques e margens de rios cria espaços de convivência e lazer. Exemplos incluem as margens revitalizadas de rios, como o Rio Sena, em Paris.

SUPERQUADRAS SENSÍVEIS À ÁGUA

 

O movimento das cidades sensíveis à água originou-se na Austrália. Elas buscam formas de convivência harmônica com a água, respeitam o ciclo hidrológico, facilitam a infiltração de água de chuva. Constroem jardins filtrantes, valetas para conduzir a água de chuva, telhados verdes, áreas de infiltração em cada lote, evitando que as enxurradas se avolumem.

Nesse contexto, revalorizada pelas mudanças climáticas com seus eventos extremos, cabe ressaltar a importância da concepção urbanística das superquadras em Brasília. Concebidas há mais de 60 anos por Lucio Costa, tornaram-se um padrão urbanístico desejável. Ali as árvores crescem livremente, com espaço generoso. A fiação é subterrânea e elas não sofrem podas radicais como vemos em outras cidades em que são confinadas em passeios estreitos e com fiação aérea.



Houve ciência e arte em Brasília, com planejamento e desenho urbano, paisagismo, urbanismo e arquitetura. As superquadras são uma inspiração para um modelo saudável de cidade sensível à água. 

Burle Marx e outros paisagistas contribuíram para esverdear a cidade. Não havia conhecimento sobre paisagismo e arborização urbana no cerrado e tudo foi aprendido experimentalmente. Hoje Brasília é um grande parque nas suas Asas Sul e Norte, entremeado por edifícios e casas onde as pessoas vivem.  Essas generosas áreas verdes são esponjas que absorvem grande parte da água de chuva e reduzem os riscos e danos das inundações catastróficas que acontecem em outras cidades.

A superquadra é amigável para com as crianças, com muitos espaços para elas brincarem, nos pilotis abertos e sem cercas dos prédios, nas áreas verdes onde passeiam com seus animais de estimação, nos playgrounds cercados ou não. Durante a pandemia do COVID-19, as quarentenas e a necessidade de ficar em casa tornaram mais nítida a qualidade do urbanismo e da arborização da cidade. Dispõem de espaços para exercícios físicos ao ar livre, sem aglomerações, o que contribui para aliviar o isolamento físico necessário na emergência sanitária, para promover a saúde e para evitar que o vírus se espalhe. Elas mostraram qualidades valiosas com seus amplos espaços públicos, muito verde, muita ventilação e iluminação natural, pouca densidade e aglomeração, ambientes saudáveis e já testados pela prática e vivência. Tais espaços se tornaram mais valiosos e foram apropriados mais intensamente; evitaram que as crianças ficassem confinadas nos apartamentos e lhes proporcionaram espaços livres, abertos.

Brasília foi construída pelo estado, em terras públicas previamente desapropriadas. Não sofreu as limitações impostas pelo mercado imobiliário ao construir em terras de propriedade privada, quando a busca pelo lucro e pela redução de custos reduz espaços públicos e áreas verdes, sacrificando a qualidade ambiental, como aconteceu em cidades satélites e em assentamentos na periferia do Distrito Federal e em praticamente todas as cidades brasileiras.

Cada superquadra tem sua prefeitura, na gestão urbana descentralizada. A mobilização dos moradores em torno de objetivos locais é o ponto de partida para várias benfeitorias urbanas: a implantação de playgrounds para crianças, a gestão dos resíduos, as questões de segurança e o controle da poluição sonora.

Durante muitas décadas, praticamente não aconteciam inundações urbanas na cidade. Entretanto, em algumas áreas houve excessiva impermeabilização do solo por estacionamentos, pistas de automóveis, construções variadas. Isso interferiu no sistema de drenagem. Maior volume escorria depois de chuvas fortes e passaram a ocorrer inundações a jusante dessas áreas impermeabilizadas.    Outras causas contribuem para as inundações, como o entupimento das redes de drenagem existentes, a falta de manutenção adequada e os eventos extremos associados ao aquecimento global. 

Em 1987 Brasília tornou-se a única cidade moderna inscrita na lista do patrimônio mundial da UNESCO, o que a protegeu das investidas das empresas imobiliárias para adensá-la e verticalizá-la.

O espírito que inspirou a criação das superquadras em Brasília precisa ser resgatado e valorizado para que a cidade continue a oferecer inspirações para a urbanização no Brasil.

 

HARMONIA COM A ÁGUA NO JAPÃO

É inspirador observar o relacionamento harmônico com a água de modo integrado com o uso do solo e as florestas no Japão.[2] O país é cercado por mares e muito rico em fontes, originárias dos Alpes japoneses. Suas montanhas ocupam 70% da superfície e constituem a espinha dorsal do arquipélago. Elas têm ocupação humana rarefeita em contraste com os vales em que há cidades muito densamente ocupadas.

As densidades populacionais e de ocupação do solo são muito altas nas metrópoles japonesas e no país. Com área total de 372 mil Km2 (equivalente à área do Estado do Rio Grande do Sul) e com 126 milhões de habitantes, a densidade média da população é de 337 habitantes por Km2., ou seja, cerca de 15 vezes maior do que a média brasileira.  Os Alpes japoneses são, em sua maior parte, ocupados por florestas, que servem para a proteção dos solos e o controle da erosão. Ainda que a maior parte das florestas seja de propriedade privada, sua exploração e a comercialização do produto são usualmente feitas por meio de associações florestais. Sendo o país de clima temperado, a vegetação demora 80 anos para ser explorável e, desta forma, as florestas são consideradas como poupança, mais do que como investimento com retorno em curto prazo.



O fundo de vale não ocupado em cidade japonesa reduz prejuízos com enchentes.

 

Apesar da altíssima densidade populacional, os fundos de vales em cidades japonesas são mantidos não edificados. Preservam-se os vales nas cidades com canais abertos e parques lineares, que são inundados com as chuvas. Quando elas se vão, não deixam danos econômicos ou sociais. Ela é integrada no paisagismo e no urbanismo de modo harmônico e leva em consideração questões econômicas e de segurança em casos de inundações.

 

O uso da terra urbana e rural está sujeito a regras elaboradas. Um perfil típico é a ocupação urbana das faixas de interseção entre as montanhas e os vales. As montanhas são usadas para reflorestamento e preservação ecológica, além do uso econômico; os vales são usados para a agricultura intensiva que, em muitos casos, aproveita os espaços vazios nas periferias urbanas, onde os terrenos não construídos são raramente ociosos. Hortas, pomares e plantações diversificadas ocupam essas valiosas faixas, contribuindo para o abastecimento alimentar. No Japão, programas intensos de reflorestamento de encostas, de criação de cooperativas florestais e de proteção à cobertura vegetal reduziram as inundações nas planícies e os prejuízos à economia agrícola.

Mas isso nem sempre foi assim e as práticas de convivência harmônica com a água resultaram do aprendizado social sobre os riscos e os custos da ocupação inadequada dos vales. No passado houve desflorestamento das montanhas, erosão e assoreamento nos vales, perdas agrícolas, fome e problemas sociais.  O exemplo seguinte é elucidativo: no século XIX o Japão sofria sérios problemas de enchentes originadas em suas montanhas, que haviam sido desflorestadas. As planícies com plantações de arroz eram frequentemente inundadas por enchentes que causavam prejuízos, perda da produção agrícola e fome. O país, que então se abria para o mundo, buscou no exterior apoio de quem conhecia bem as inundações: contatou os holandeses, que sabiam conter o mar com diques e evitar que as terras baixas fossem inundadas. Os holandeses estudaram o problema das enchentes japonesas e propuseram ações baseadas em sua experiência. Não tiveram sucesso. Os japoneses resolveram, então, buscar sua própria solução para o problema. No plano decenal de 1884, que fixou as linhas para a entrada do Japão no período moderno de sua história, defendia-se a importância de melhorias contínuas nas tecnologias tradicionais disponíveis. Assim, observaram que numa das ilhas os problemas de enchentes eram menores que no restante do país. Ali se protegiam as montanhas com florestas e o uso da lenha não gerara muito desmatamento. Disseminaram em todo o país aquelas práticas tradicionais. Programas intensos de proteção de encostas reduziram as inundações. Cooperativas florestais foram criadas para administrar as florestas e manejá-las de forma sustentável, usando a madeira para mobiliário e construção civil.



A floresta nos Alpes japoneses protege o solo e tem aproveitamento econômico sustentável.

O florestamento dos Alpes japoneses foi estratégico para conter sedimentos e erosões. As medidas de prevenção e controle evoluíram e compreendem a manutenção integral da cobertura de florestas nas áreas montanhosas, a construção de represas para conter a terra que escorre das montanhas junto com a chuva e a proteção de encostas por meio de redes metálicas ou de plástico, que previnem os deslizamentos de terra. Quando os japoneses aprenderam a cuidar melhor de suas montanhas e florestas, evitaram o desmate descontrolado, reduziram a erosão e as perdas agrícolas.

Hoje, o Japão ensina a aproximação com a água, voltando-se de frente para os lagos, rios e regatos. As cidades procuram ter intimidade com ela, evitando que córregos sejam aprisionados em canais fechados. Promove-se a reintegração urbana da paisagem ribeirinha e dos seus animais, como rãs e libélulas. Evita-se asfaltar as vias, para não agravar problemas de drenagem e provocar inundações. Evita-se que a chuva escorra diretamente para os rios; ela se infiltra lentamente no solo. Represas de armazenagem da

chuva em tanques subterrâneos e regularização da drenagem são previstas nos parcelamentos urbanos. Age-se preventivamente na organização humana do espaço e na ocupação do solo.

 O Japão ensina soluções práticas para prevenir inundações e para articular a gestão da água com o uso e ocupação do solo. Ensina que a aprendizagem coletiva de convivência harmônica com a água é um processo civilizatório e cultural em que se aprende a partir dos erros cometidos, em aproximações sucessivas.

Os japoneses aprenderam com a dor, com o sofrimento e com os prejuízos econômicos provocados por terremotos e inundações, a atuar preventivamente e com prudência ecológica no seu ordenamento territorial. O exemplo japonês mostra uma sociedade que aprendeu a dar respostas adequadas aos problemas de injustiças sociais e de segurança ecológica e ambiental. O Brasil tem muito a aprender com a experiência japonesa nesse campo.

HIDRODESIGN

No design, particularmente no design de interiores e de objetos, o foco é na organização do espaço em níveis menores e mais específicos. O design de interiores, por exemplo, cria ambientes internos que equilibram estética e funcionalidade, utilizando luz, cor e materiais para definir atmosferas e moldar percepções. A água é usada em aquários, fontes internas ou cascatas decorativas para criar um ambiente relaxante.

 

O design transparente da embalagem da água engarrafada na Índia.

No Design de produto a água influencia a criação de objetos funcionais e artísticos, como garrafas, fontes decorativas e roupas com temáticas aquáticas. O navegador Amyr Klink navegou solitário pelos mares. No oceano salgado, cada gota é preciosa. Ele fala que, no projeto do barco, a torneira é acionada com o pé para não a desperdiçar.   No Design Industrial, produtos como purificadores, recipientes de água e sistemas de irrigação demonstram como o design pode responder a desafios de armazenamento e uso sustentável. Em situações de extrema escassez, cada gota vale ouro e soluções engenhosas de design poupam a água valiosa. Em Israel e na Austrália tais soluções são concebidas e aplicadas. Na Califórnia os cidadãos recebem incentivos econômicos do governo para substituírem equipamentos e instalações por outros que economizem água e sejam hidroeficientes. O uso de torneiras automáticas e eletrônicas, aeradores, reguladores, restritores de vazão, dispersores em torneiras e chuveiros, vasos sanitários com duplo acionamento por descarga permitem reduzir o gasto e as despesas na conta de água. Indústrias são estimuladas a colocarem tais instalações no mercado e as normas e regulamentos induzem o seu uso.

No design de paisagem projetos que envolvem lagos artificiais, jardins aquáticos e elementos como biolagoas integram água para promover ecossistemas saudáveis.

O design de mobiliário é uma extensão das artes espaciais porque trabalha diretamente com objetos que definem e interagem com o espaço. Um móvel pode estruturar um ambiente, influenciar o fluxo de movimento e até moldar as relações entre pessoas e o espaço. A disposição de móveis em um cômodo cria "micro-espaços" que têm funções específicas.  O movimento e a fluidez da água muitas vezes inspiram o design de móveis com linhas curvas e orgânicas. O mobiliário para áreas externas, como decks e espreguiçadeiras, é projetado para resistir à umidade e interagir com ambientes aquáticos, como piscinas e praias.

Quando Brasília foi construída, nos anos 1960 e 1970, não havia preocupação com gastos de água e energia. Nos apartamentos então construídos, havia aquecedor central e a água quente precisava fluir vários metros até chegar aos chuveiros. Para tomar um banho quente, era preciso deixar a torneira aberta durante vários minutos. Em prédios recentes, construídos no contexto da crise energética e hídrica, instalam-se aquecedores solares que reduzem o consumo de energia elétrica e a torneira quente é ligada nessa tubulação. O consumo de água é reduzido.

O hábito de ter à disposição a fartura de água não ajudou a criar uma cultura de economia. Em cidades coloniais antigas, como Ouro Preto, ela corria livre e gratuitamente em chafarizes públicos e muitas casas tinham bicas correntes gratuitas. Não havia torneiras ou registros de controle ou cobrança de tarifas pelo uso.

A expressão “do berço ao túmulo” designa o ciclo de vida dos produtos – objetos, edifícios ou cidades. Ela considera o ciclo da extração e exploração de recursos naturais, sua transformação, uso e descarte.  Entretanto, esse ciclo é mais amplo e precisa incluir seu período pré-natal: antes de um bebê ir para o berço, há a concepção e meses de gestação. Objetos, casas ou cidades, também têm um período de concepção e projeto, antes que venham à luz.  Arquitetos, urbanistas, engenheiros, designers e todos aqueles que projetam objetos, edificações ou o ambiente construído têm papel crucial nessa fase pré-natal para encontrar soluções hidroeficientes e proporcionar economia. Os objetos são projetados e, antes de se materializarem, existem na mente e na imaginação de quem os projeta e concebe.

O hidrodesign é uma estratégia proativa para reduzir o consumo excessivo e para reduzir perdas. É uma forma inteligente de proteger o meio ambiente, preventivamente, ao aproveitar ao máximo as águas, promover o uso de tecnologias limpas e processos de produção hidroeficientes.

O hidrodesign leva em consideração os aspectos estéticos, funcionais, de segurança ou de ergonomia dos produtos, casas ou cidades, bem como a maneira com que cada um de seus componentes afeta a água. Por meio do desenho de produtos que levam em consideração todo o seu ciclo de vida, desde sua concepção até o seu tratamento, é possível conceber formas de reduzir o impacto de seu uso sobre a natureza que fornece a água virtual que resultará naqueles produtos. 

Hidratar o design de produtos, de edifícios e de cidades é um modo responsável de atuar na sua concepção, podendo reduzir os impactos da atividade humana e tornar essa relação mais amigável.



[1] F. Batman Ghelidji, em "Seu Corpo Chora por Água". Todas as partes do corpo humano dependem de água. Se as glândulas e órgãos não são nutridos com água boa e limpa, suas funções começam a se deteriorar.

[2] O Japão é estudado no livro Colapso, de Jared Diamond, como um exemplo positivo de civilização que aprendeu a se relacionar de modo mais amigável com o ambiente e a água.

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