A lei brasileira de recursos hídricos, no.9.433 de 8 de janeiro de 1997, tem vários méritos.
Nessas décadas de vigência da lei houve avanços na gestão. Muitos conflitos foram evitados, muito conhecimento foi produzido, multiplicaram-se as pessoas capacitadas para gerenciar os recursos hídricos. Implantaram-se conselhos e comitês; criaram-se órgãos gestores e agências reguladoras; aplicaram-se instrumentos de gestão; tornou-se prioritária a busca por segurança hídrica.
Entretanto a lei tem algumas limitações.
Historicamente, desde o Código de Águas de 1934, o tema era da alçada do setor elétrico, devido à importância da hidroeletricidade na matriz energética brasileira. A lei brasileira foi concebida num momento em que o usuário dominante era o setor elétrico. Na origem conceitual e no DNA da lei 9.433 há forte influência do setor elétrico. A lei traz a influência do pensamento e das práticas desse usuário. O Departamento Nacional de Águas e Energia Elétrica – DNAEE era responsável por cuidar do tema. Para esse uso, o grande segmento de interesse é o curso médio dos rios onde há volume e quedas com potencial para gerar energia. Os trechos superiores e as nascentes em geral têm pouca água e nas zonas costeiras e estuarinas há poucas diferenças de altitudes para gerar energia. As subterrâneas não são aproveitáveis para gerar energia e foram colocadas sob o domínio dos estados. A questão da qualidade é secundária para a geração de energia. Assim, a gestão dos recursos hídricos privilegiou aspectos ligados à parcela das águas utilizáveis na geração de energia.
A legislação brasileira é diferente de outras legislações, como a europeia, por exemplo, que enfatiza a importância ecológica da água como um patrimônio a ser protegido. As leis no Brasil e na Europa são bastantes diferentes em suas concepções.
Na Europa, a Diretiva Quadro das águas foi aprovada no ano 2000 e enfatizava a meta de alcançar o bom estado ecológico das águas e a sua importância como patrimônio a ser protegido.
Na União Europeia, o primeiro considerando da norma que estabelece um quadro de ação comunitária no domínio da política da água diz que “ A água não é um produto comercial como outro qualquer, mas um patrimônio que deve ser protegido, defendido e tratado como tal. ”
Características das leis das águas europeias
patrimônio hídrico
proteção dos ecossistemas aquáticos
abordagem ecológica
âmbito de aplicação abrangente
Outras limitações da lei brasileira são sua supervalorização dos aspectos econômicos, sua desconsideração para com as águas na atmosfera, sua subvalorização do patrimônio ecológico, seu caráter pouco voltado para a proteção e a preservação.
No Brasil, a Lei nº 9.433 explicita duas vezes que a água é um recurso natural limitado, dotado de valor econômico, mas não explicita em nenhum momento que ela tenha valor ecológico. A legislação brasileira em nenhum dispositivo define o que são os recursos hídricos. A lei brasileira tem um viés utilitarista, ao considerar a água como um objeto, um insumo da produção econômica, um recurso ao qual se pode recorrer para atender a necessidades essenciais ou a demandas supérfluas da sociedade. As outorgas ou autorizações para uso das águas visam repartir esse recurso, crescentemente disputado para a produção agrícola, o abastecimento humano, a indústria, além de usos que não a consomem mas que influenciam na sua gestão, como a geração de energia e o transporte hidroviário
A lei menciona 174 vezes a palavra recurso. Por isso, a lei 9.433 pode ser chamada de lei de recursos hídricos, mas é impróprio chamá-la de lei das águas. Ela as concebeu como um recurso a ser utilizado e não como patrimônio de valor ecológico a ser, também, protegido. A lei não menciona uma única vez a palavra patrimônio, uma riqueza a ser cuidada.
A visão utilitarista que está na sua origem ou DNA tem repercussões em toda a política e na gestão que se faz baseada no texto legal. Quando se deseja proteger um curso d’água como patrimônio é necessário recorrer a outras legislações, tais como os planos diretores e os macrozoneamentos de uso e ocupação do solo, na lei urbanística, e o tombamento, na legislação relativa ao patrimônio cultural.
Para tornar-se efetivamente uma lei das águas, sua concepção precisaria ser ampliada para abranger as demais formas de presença da água nos oceanos e mares, nas nuvens, nos corpos vivos etc. O viés utilitarista da lei brasileira precisa ser contrabalançado com a ênfase no seu valor ecológico. Caso venha a se ecologizar a legislação brasileira de recursos hídricos, alterar o seu DNA e sua concepção ela poderá, à maneira da Diretiva Quadro das águas europeia, valorizar seus aspectos ecológicos e de proteção do patrimônio. Poderá então ser chamada, corretamente, de Lei das Águas.
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