quinta-feira, 30 de janeiro de 2025

RENATURALIZAÇÃO DE FUNDOS DE VALES

 

A natureza é uma mestra que, por meio de desastres, ensina lições. Caso sejam aprendidas, elas podem levar a mudanças de comportamentos individuais e coletivos. Por meio dos deslizamentos de encostas, inundações urbanas e rurais, secas e estiagens, a natureza se manifesta. Aprende-se a evitar comportamentos temerários, tais como a ocupação de áreas vulneráveis e de risco, e a ter prudência  a partir do sofrimento, das perdas de vidas e dos prejuízos econômicos. 




Nenhuma descrição de foto disponível.

Figura: Água, sua linda! Várzea natural e ocupada indevidamente.

Os cursos d’água têm leitos de vazante, leitos menores e leitos maiores que enchem durante chuvas intensas. 

  

Cada curso d’água tem seu leito normal e seu leito de inundação, que corresponde à faixa inundável, quando vêm as chuvas mais fortes. No afã de aproveitar ao máximo os terrenos, durante muitos anos adotou-se a prática de drenar os fundos de vales e construir avenidas sanitárias ao longo deles. Não satisfeitos em eliminar as faixas de inundação, os administradores urbanos, com o auxílio técnico de engenheiros e urbanistas, cobriram com asfalto e concreto os próprios córregos, riachos e ribeirões. Em muitas cidades os rios tornaram-se invisíveis ao serem canalizados, cobertos com pistas de rolamento para veículos.  Sistemas de alerta para interditar tráfego em períodos de pico de cheia passam a ser necessários nos fundos de vales já ocupados. Eles foram literalmente encaixotados. Essa abordagem tinha, aos olhos de quem a praticava, a vantagem de tirar da vista e do convívio dos cidadãos os lugares úmidos, propícios à criação de mosquitos e ao despejo de resíduos. A avenida sanitária liberava terrenos para uso, ocupação e especulação imobiliária; eliminava áreas insalubres e propiciava novas pistas de rolamento para veículos, nas cidades dominadas pelos automóveis.

Este tipo de solução cobra seu preço. Inundações e enchentes urbanas se agravam quando os espaços para a ocupação imobiliária e para o automóvel invadem as faixas ribeirinhas nos fundos de vales e são construídas avenidas, que encaixotam os rios urbanos e tiram o espaço natural da água. Anos depois, a impermeabilização das bacias hidrográficas ocupadas por construções, asfalto e cimento, faz com que aumentem os volumes que escorrem nas enxurradas e nas chuvas mais fortes. Os caixotes que contêm os córregos não comportam a vazão aumentada e eles literalmente estouram, extravasando as águas ali comprimidas e quebrando o concreto e o asfalto. Fatos como esses tornaram-se comuns em várias cidades, provocando prejuízos econômicos e mortes. Em Belo Horizonte, pessoas morreram afogadas dentro de seus veículos que trafegavam por uma avenida de fundo de vale no momento de uma súbita enchente.

Essa concepção de engenharia e de urbanização passou a ser contestada em muitas cidades em todo o mundo e surgiu a tendência de renaturalizar os fundos de vales, devolver essas faixas a seu estado natural, retirar concreto e asfalto e criar parques lineares destinados ao lazer, à recreação e aos esportes.

Esse padrão urbanístico foi utilizado em algumas cidades, antes que os vales fossem ocupados. No Brasil, Curitiba, com seu urbanismo ecologicamente amigável, foi pioneira na criação de parques lineares nos fundos de vales.  Em países de urbanização mais antiga e com alta densidade de população, como o Japão, também se pratica o urbanismo que preserva os fundos de vales. As faixas verdes amortecem as cheias, abrigam temporariamente os grandes volumes, são inundadas. Quandoas águas se vão, reaparecem os parques de lazer, esportes e recreação. Sem mortes, sem prejuízos econômicos, respeitam-se as faixas marginais dos rios e seus leitos de inundação. As águas agradecem, a cidade também.

É possível recuperar os rios e reintegrá-los à paisagem urbana, como mostram várias experiências no mundo. 

Faixas de inundação são deixadas sem ocupação ao longo de vários rios. Florença tem essas áreas ao longo do rio Arno. São João del Rey tem faixas verdes no córrego do Lenheiro.

Para isso acontecer é necessária uma mudança de mentalidade e de padrão de engenharia urbana e o abandono do urbanismo hidroalienado. Administradores, engenheiros, urbanistas e arquitetos concebem os projetos de renaturalização e os modos de colocá-los em prática.  Empreiteiras acostumadas a propor obras caras e ineficientes e a drenar recursos públicos para tais soluções perdem espaços para empresas que propõem e constroem  soluções hidroconscientes. Os cidadãos cansados dos desastres causados pelas chuvas nas cidades aprendem que esse é um padrão adequado e cobram dos governos para que seja aplicado o urbanismo hidroconsciente. Com mudanças como estas, constroem-se as cidades sensíveis à água.


Nenhum comentário: