O poeta municipal
discute com o poeta estadual
qual deles é capaz de bater o poeta federal.
Enquanto isso o poeta federal
tira ouro do nariz
Carlos Drummond de Andrade
A gestão do ciclo da água varia do micro ao macro. Ela pode ser abordada em diversas escalas, desde o nível molecular, como na homeopatia ou na pesquisa sobre o quarto estado da água, até as escalas em que as águas são medidas como doses, litros, metros cúbicos ou hectômetros cúbicos. Da molécula ao oceano e ao cosmos variam essas escalas e as formas de abordá-la.
Usando a imagem concebida por Pierre Dansereau, distinguimos dez escalas, do indivíduo ao planeta; da água que se encontra no corpo dos seres vivos e de cada ser humano, até aquela para o abastecimento nas casas, edifícios e cidades; às bacias hidrográficas em que ela circula na superfície; até as regiões, estados, países, continentes e a escala planetária onde ela circula na atmosfera e nos oceanos. Em cada uma delas destaca-se uma agenda de temas relevantes, exemplificada abaixo:
No centro dessa mandala está o indivíduo interior, cujo organismo é composto de 70% de água e cuja saúde está diretamente relacionada com a quantidade e a qualidade que ingere. Ela passa pelo nosso corpo e pelos corpos dos demais seres vivos animais e vegetais e somos parte do seu ciclo integral. Vale cuidar bem dessa água interna, hidratar adequadamente o corpo, ingerir água de boa qualidade, evitar o contato com águas poluídas ou contaminadas.
O indivíduo exterior e sua higiene corporal, banhos, limpeza, relação com a umidade no microclima e com a água limpa ou contaminada, que afetam o bem-estar e a saúde física. Banhar-se e tratar da saúde com a crenoterapia das águas medicinais e em estâncias hidrominerais são ações para a gestão dessas águas.
A família, o grupo social básico ao qual pertence, onde se educa na relação com o ambiente e com a água e onde aprende a não desperdiçar. Valores, atitudes e comportamentos podem reduzir gastos com água na economia doméstica e ajudar a formar uma cultura de cuidado para com ela.
A casa, com seus sistemas de abastecimento e de coleta e disposição de esgotos; a captação de chuva nos telhados, aproveitando de modo descentralizado a que vem da atmosfera para regar jardins e para uso não potável. O autoabastecimento com cisternas, o reaproveitamento de águas servidas para fins menos nobres. Arquitetos e engenheiros podem criar e construir projetos de edifícios residenciais, comerciais, industriais e para outras finalidades que se relacionem de modo harmônico com ela, que evitem o desperdício e possibilitem seu bom aproveitamento e reuso.
A vizinhança, escala em que podem-se construir sistemas de esgotamento condominial de um conjunto de casas e tomar cuidados para evitar a contaminação de cisternas por esgoto lançado no subsolo. Em comunidades e organizações sociais, como escolas, os programas de educação podem proporcionar uma relação amigável das crianças com os rios e córregos de suas vizinhanças, tais como propõe o projeto Esse rio é meu em muitas localidades, especialmente no Rio de Janeiro.
O assentamento urbano, ecossistema que precisa de água para funcionar e que a devolve ao entorno, muitas vezes sem tratamento e com qualidade inferior à daquela que foi utilizada. Envolve construir sistemas de coleta e tratamento de água e de esgotos, com o investimento necessário para colocá-la num padrão de qualidade que a torne potável. Trata dos custos da despoluição. Aborda a drenagem e escoamento superficial para evitar inundações urbanas, a adequada ocupação do solo em fundos de vales, respeitando faixas de inundação de rios e demais cuidados do urbanismo hidro consciente. As ilhas de calor que se formam sobre as cidades aumentam os riscos de formação de nuvens e de chuvas torrenciais e de inundações. A extração descontrolada de água do subsolo provoca o afundamento da superfície, como ocorre em Jacarta, capital da Indonésia, na cidade do México ou em Houston-USA. Em cidades costeiras essa extração de água subterrânea facilita a entrada de cunhas salinas, tornando salobras as águas dos poços anteriormente usados para abastecimento humano.
A paisagem no entorno das cidades. Nas periferias e áreas rurais nos municípios, destacam-se a proteção de mananciais de abastecimento e os cuidados com o uso do solo. A interconexão das superficiais e subterrâneas: a recarga de aquíferos e a reservação de água subterrânea, os cuidados para se evitar enxurradas e escoamento superficial e para facilitar com que se infiltre nos solos permeáveis e reabasteça os mananciais. A prevenção da poluição de aquíferos subterrâneos. O encarecimento do custo da água quando se perdem os serviços ambientais e quando aumenta a necessidade de investir em obras de infraestrutura hídrica – reservatórios, aquedutos, estações de tratamento. Os macrozoneamentos municipais, planos de uso e ocupação do solo hidro conscientes podem evitar os riscos de abastecimento urbano e proteger os mananciais.
As bacias e regiões hidrográficas, unidades de planejamento e de gestão enfatizadas na legislação e nas quais se aplicam os instrumentos de gestão tais como os planos de bacias, os sistemas de informação sobre recursos hídricos, o monitoramento de chuvas e de vazões, a cobrança pelo uso, seu enquadramento em classes de uso. Os conselhos de recursos hídricos, os comitês de bacias hidrográficas e a participação da sociedade no planejamento e na gestão são espaços para mediar os conflitos pelo uso. Em situações emergenciais pode-se gerar a necessidade de declarações de estado de escassez hídrica e determinar o racionamento na distribuição para que a água não venha a faltar.
Os países, cada qual com suas disponibilidades hídricas, problemas de escassez e estresse hídrico, necessidades de articulação institucional entre os vários usuários e entre os vários níveis federativos. Há necessidade de gestão de modo integral, que considere a etapa atmosférica das águas. No caso brasileiro, destaca-se o desmatamento na Amazônia e suas repercussões sobre a redução de chuvas no centro-oeste e no sudeste brasileiro, com a redução dos rios voadores que trazem nas nuvens a umidade da Amazônia. As conexões entre as torneiras secas no Sudeste e o desmatamento da Amazônia. A necessidade de atuar cooperativamente com os países vizinhos com os quais se compartilham bacias hidrográficas ou aquíferos de águas subterrâneas, como o Aquífero Guarani.
A escala do planeta. Os oceanos e a atmosfera, o ciclo da água na natureza e sua presença em estado gasoso, líquido ou sólido, como evapora ou congela com as variações de temperatura. A formação e a movimentação de nuvens e chuvas, bem como o serviço prestado pela evaporação nos oceanos, que dessaliniza de modo natural. O El Nino, com o aquecimento do oceano Pacífico, que provoca mais chuvas no sul do Brasil e menos chuvas no Nordeste. Os fenômenos climáticos relacionados com o aumento de temperatura da terra e dos oceanos, a maior evaporação dos oceanos e os riscos crescentes de furacões, ciclones, de secas em algumas regiões e chuvas excessivas em outras. Climatologistas, meteorologistas, criologistas, oceanógrafos e outros profissionais tem contribuições relevantes a dar quanto a essa escala da gestão das águas, a exemplo do físico Paulo Artaxo, do climatologista Carlos Nobre, de meteorologistas como Marengo, de agrônomos como Antonio Donato Nobre. Estudo recente publicado em 2024 constata que o ciclo global da água está desregulado.
A água é parte de um sistema hídrico, que por sua vez é componente de um organismo vivo, seja ele o corpo humano, dos animais e dos vegetais, uma bacia hidrográfica ou o planeta Terra. A compreensão dessas várias escalas de abordagem, do micro ao macro, do nano ao mega, facilita que nos relacionemos adequadamente com o seu ciclo e façamos uso de uma ampla caixa de ferramentas existentes em vários campos das políticas públicas e que permitem uma melhor gestão das várias escalas do ciclo das águas, na superfície, subterrâneas ou celestiais.
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