“Você abusou,
tirou partido de mim , abusou.”
música de Antônio Carlos e Jocafi
A demanda por água, se descontrolada e desregulada, se não balizada por limites técnicos e éticos, pode levar a sua exaustão, fazer com que se torne escassa e desapareça, prejudicando a qualidade de vida.
Sabendo usar, não vai faltar, é uma frase popular que se aplica à relação com as águas, cujo abuso e superexploração podem provocar escassez.
No Brasil a gestão das águas esteve historicamente ligada ao Ministério das Minas e Energia, pois o setor elétrico era o usuário dominante, para a geração de hidreletricidade. Na medida em que outros usuários, como por exemplo a agricultura irrigada e, com o crescimento demográfico, o abastecimento urbano, passaram a se fortalecer e a disputar os recursos hídricos, organizou-se a gestão baseada no princípio dos usos múltiplos. A lei n. 9.433 de 1997 propôs que em situações de escassez os usos prioritários são o abastecimento humano e a dessedentação de animais. Para lidar com seus usos múltiplos, a localização institucional do tema migrou para o Ministério do Meio Ambiente. Ali ela permaneceu durante quase 20 anos, tendo sido transferida para o Ministério do Desenvolvimento Regional em 2018. Ali se encontra abrigado o Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos – SINGREH, previsto na Constituição Federal de 1988.
Quadro - Usos múltiplos.
• Abastecimento humano
• Dessedentação de animais
• Geração de energia elétrica
Indústria
• Irrigação
• Navegação
• Pesca e piscicultura
• Proteção das comunidades aquáticas
• Recreação, turismo e lazer
A água é um elemento articulador estratégico em torno do qual se podem desenhar processos de desenvolvimento regional menos setorizados e com maior integração. Por ser valiosa para todas as atividades humanas, que são hidro-dependentes, as decisões sobre o que fazer com ela e como compatibilizar os vários usos precisam levar em consideração esses vários usuários. Se isso não é feito, ocorrem problemas graves. Usos múltiplos significa interesses econômicos múltiplos e por vezes contraditórios e conflitantes. Assim, por exemplo, um trecho de ferrovia projetado pelo setor de transportes foi inundado pelo reservatório de uma usina hidrelétrica, planejado pelo setor energético, com prejuízos para o país, em investimento desperdiçado.
Vários estudos para construir eclusas em barragens de usinas hidrelétricas foram inviabilizados pelo poder de postergação e de veto do setor de energia elétrica. Prejudicou-se a economia nacional como um todo em benefício da economia de alguns recursos com a não construção de uma eclusa que permitisse o deslocamento de barcos e o transporte hidroviário. O planejamento socioeconômico integrado de uma bacia hidrográfica, com participação intersetorial, é um modo de atuar para superar os problemas das abordagens e interesses setoriais fragmentados.
Jogos de forças políticas, econômicas e de conhecimento atuam, se fazem representar e procuram impor a prevalência de seus interesses. Mais do que problemas de escassez, a falta de acesso a ela é uma questão política e social, pois a apropriação dos recursos é realizada pelos que têm maior poder político e econômico e, num quadro de extremas desigualdades, os pobres ou os setores mais fracos têm menos possibilidades de ter acesso à água.
Prevenir, mediar e resolver conflitos entre esses múltiplos usuários é uma tarefa enfrentada por comitês de bacia, por conselhos e por órgãos reguladores em salas de crise e em processos de alocação de água.
Na medida em que as sociedades evoluem, mudam as demandas e as necessidades de uso da água. Alguns usos são abolidos junto com as práticas que os demandavam, outros caem em desuso. No passado, quando a sociedade aceitava a escravidão, era necessário produzir os instrumentos e equipamentos para subjugar os escravos: gargalheiras, troncos, chibatas, correntes, algemas, pelourinhos. Cada um desses objetos demandava uma quantidade de água para ser produzido. Quando se praticava a tortura, era necessário produzir instrumentos para essa finalidade, como as forquilhas, parafusos, chicotes, garrotes etc e aplicar as práticas como os afogamentos. Era necessário usar água para produzir tais instrumentos ou práticas. Quando a tortura deixou de ser socialmente aceitável, deixou de ser necessário usar água para essas finalidades. Abolir a tortura e a escravidão aboliu também a demanda por uma parte da água que era então consumida. Atualmente há atividades humanas, como as guerras, que demandam grande quantidade de água para a fabricação de tanques, aviões e navios de guerra, submarinos, armamentos de todo tipo. Caso as guerras fossem abolidas, deixaria de ser necessário o uso de grandes quantidades de água, que poderiam ser liberadas para outras utilizações ou para a proteção e conservação. O consumismo, o viajismo, o belicismo, o carnivorismo estão presentes na sociedade contemporânea e merecem uma abordagem crítica para que sejam reduzidos ou abolidos, do mesmo modo como no passado a escravidão e a tortura foram questionadas e abolidas depois de lutas e embates.
Do mesmo modo, caso se mudassem as dietas alimentares, de hábitos carnivoristas para outros mais vegetarianos ou veganos, grandes quantidades de água deixariam de ser necessárias para irrigação, uso em frigoríficos, matadouros, lavagens de resíduos etc. e poderiam ser liberadas para finalidades social e ambientalmente menos impactantes.
Hoje a sociedade se encontra diante de situações em que é necessário usar a água de modo responsável, parcimonioso, frugal, austero. É necessário não a desperdiçar em usos que não sejam os socialmente prioritários. Uma sociedade que se dispusesse a rumar para uma melhor qualidade de vida para todos deveria escolher que atividades, bens e serviços deve proporcionar e usar a água prioritariamente para tais finalidades.
Trata-se de escolhas, definições e diretrizes que as sociedades precisam tomar e que repercutem direta ou indiretamente sobre as demandas por água. Uma vez feitas tais escolhas ou definições, os gestores das águas teriam um balizamento mais claro sobre como aplicar a cobrança pelo uso da água, que desincentiva seu desperdício, ou a outorga de direitos de uso, que ajuda a reduzir conflitos, o planejamento de recursos hídricos e os demais instrumentos de que dispõem para bem usar ou proteger o patrimônio hídrico.
No contexto da mudança do clima e da crise ecológica e hídrica, está na hora de levantar tais questões e colocá-las para a reflexão e o debate social, ético, econômico e político.
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